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FORMIGAS E TAMANDUÁS

 Arte: Tiago Spina

Venho ruminando uma forma de pôr no papel algo vivido, dias atrás, por este escriba de letras tortas.

Antes, vamos usar nossa imaginação...

Imagine você um formigueiro situado numa fazenda de bilhões de hectares, que resolva pedir à Grande Formiga[1] que o proteja de algum mal que se aproxima. As formigas desse formigueiro, em sua fé singela, resolvem fazer preces e se engajam no trabalho de divulgação de mensagens onde solicitam que todas as formigas, de todos os formigueiros possam se unir pedindo a proteção da Grande Formiga a qual, necessariamente, deve ser uma formiga-cortadeira[2] para que corte o mal pela raiz.

Surge um problema: caso a Grande Formiga as atendesse, seria parcial, porque numa fazenda tão grande certamente haveria milhares e milhares de outros insetos. E, pior, independentemente da crença de um determinado grupo de formigas, sua fé não impediria a existência de tamanduás e isso causaria um conflito de proporções cósmicas com o Grande Tamanduá - deus dos tamanduás[3].

Exceto para um grupo de formigas estoicas[4] que se aplicam em desfrutar de um estado de espírito chamado ataraxia[5], as demais formigas funcionarão numa chave de esforço para mudar aquilo que não pode ser mudado contrariando a evidência de que certas coisas são como são e não como deveriam ser.

Alguém indagará: “como é possível saber o que não pode ser mudado?”.

Dirão as formigas estoicas: “procurando entender aquilo que pode e/ou deve ser mudado, através da observação atenta, detida, interessada da vida (não a vida alheia, é claro)”. Vale lembrar o Oráculo de Delfos[6]: “conhece-te a ti mesmo”.

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Você pode ter uma fé inabalável na providência divina, mas caso escorregue do telhado de um prédio de 20 andares, a aceleração da gravidade não se modificará para satisfazer a sua expectativa fideísta.[7]

Ao invés de orar o tempo todo para proteção de uma acidental queda de um prédio e consequente anulação da gravidade por um poder sobrenatural apelando para sortilégios e oblações[8], é melhor fazer de tudo para garantir a não-queda; além do mais, acidentes ocorrem o tempo todo e à nossa revelia: há profissões no mundo que possuem uma boa dose de risco independentemente dos cuidados que se possam tomar. Por exemplo: astronautas; mergulhadores de grandes profundidades; operários que trabalham em grandes altitudes ou em minas profundas, pessoas que lidam com doenças infectocontagiosas.

Estamos, o tempo todo, submetidos a riscos: temos de confiar que o piloto do avião; o motorista do ônibus; o condutor do trem em que estamos viajando estão com os exames médicos em dia e que tiveram uma boa noite de sono; e eles, por sua vez, devem confiar no pessoal que faz a manutenção dos veículos os quais pilotam. É uma rede de confiança e não de fé.

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Pois bem. Dias atrás, recebi uma mensagem, em áudio, pela plataforma do ZAP, onde se pedia a Deus proteção para o Brasil pela suposta ameaça à Pátria, à Família, à Propriedade, blá-blá-blá[9].

O que me intrigou foi que a pessoa que postou a mensagem, suponho, é espírita. O grupo é de estudantes de Filosofia Espírita, e não houve sequer uma reação àquela mensagem esdrúxula.

Não estou preocupado com as peculiaridades de pessoas que frequentam os centros espíritas. Isso seria picuinha. Essas pessoas não foram bem conduzidas no estudo da doutrina espírita. A questão é a qualidade do pensamento espírita como um todo. Como alguém que se diz espírita pode acreditar que o Criador de um Universo de 28 bilhões de anos-luz de raio (e essa medida pode aumentar) vai se preocupar com as desavenças políticas de um mundinho perdido no meio de zilhões de corpos, gases, galáxias?

Não te parece algo semelhante ao formigueiro pedindo proteção à Grande Formiga?

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Em tempo: a história dessa mensagem no grupo do ZAP não para por aqui. Depois, conto mais.


[1] Se fôssemos criados à imagem e semelhança de Deus, Ele estaria lascado. Numa suposta visita de extraterrestres à Terra e observando o conjunto da obra, Sua divina reputação estaria comprometida. Ao falar da Grande Formiga, refiro-me ao que disse Xenófanes (570-480 a.C.): “Os homens criaram os deuses à sua imagem e semelhança”.

Atribui-se a Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689-1755) a frase que segue Xenófanes: “Se os triângulos tivessem um deus, ele teria três lados.”.

Sigo ambos ao falar da Grande Formiga como a representação do deus imaginado por estes insetos.

[2] Formiga-cortadeira: no Brasil, também conhecida como saúva.

[3] Tamanduá: mamífero que se alimenta de formigas. Também conhecido como papa-formigas.

[4] Estoicismo: escola que surgiu na Grécia, mas que teve importantes adeptos romanos – um deles o imperador Marco Aurélio. Influenciou o Cristianismo e, até hoje, traz lições práticas de bem viver e de viver em paz aos viventes do século XXI.

[5] Ataraxia: No Estoicismo estado de completa ausência de inquietações e perturbações dada pela aguda noção de separação entre o que se pode e não se pode mudar. Uma boa parte de nossas angústias vêm de nossa incapacidade de distinguir entre uma coisa e outra. Não raro gastamos tempo e energia para mudar aquilo que não podemos mudar (pessoas, por exemplo) e negligenciamos aquelas que podem e devem ser, em certa medida, mudadas ou arrumadas (nossa cama, por exemplo).

[6] Oráculo de Delfos: na Grécia antiga, era comum as pessoas se dirigirem ao oráculo para perguntar sobre a vida, o futuro, a guerra etc. Esse oráculo ficava no templo do deus Apolo, na cidade de Delfos. No portal de entrada desse oráculo havia uma inscrição que se tornou famosa: conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses.

[7] Fideísmo: que ou quem, desprezando a razão, preconiza a superioridade da fé no conhecimento das verdades inatingíveis.

[8] Sortilégio: ato de magia; bruxaria. Oblação: oferta a Deus e aos santos.

[9] Blá-blá-blá: é expressão que pode ter vindo do francês blaguer que quer dizer “conversa ridícula, piada”. Por extensão, argumento oco. No Aurélio: conversa desprovida de conteúdo; falatório sem fundamento.

Comentários

  1. Lembrei do filme infantil "Vida de inseto" (1998) no qual as formigas diante da ameaça dos sórdidos gafanhotos "se viram" e vão pedir ajuda a... outros insetos para enfrentar os vilões.

    Entre nós sabemos que a re-solução cabe a quem é "de carne e osso", mas para outros é mais confortável crer que o "delivery do além" irá atender os pedidos pessoais ou grupais.

    O fato de alguém estar num curso já é um indício de busca de aprendizado. Contudo há uma distância entre aquele que ouve e aquele que raciocina, o que valida as próprias crenças ao invés de questioná-las. Num grupo heterogêneo é comum os entrechoques de paradigmas.

    Pode-se criar espaço para a troca (no aplicativo) de ideias se tod@s que fazem parte da 'ágora virtual' estejam cientes, e de acordo, com a(s) regra(s). Caso contrário, o intento é fortuito.

    Um salve a este blog!!

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