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DEMÔNIOS

A

 Arte: Tiago Spina

O endemoninhado gadareno[1]

5 E chegaram à outra margem do mar, à província dos gadarenos. 2 E, saindo ele do barco, lhe saiu logo ao seu encontro, dos sepulcros, um homem com espírito imundo, 3 o qual tinha a sua morada nos sepulcros, e nem ainda com cadeias o podia alguém prender. 4 Porque, tendo sido muitas vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias foram por ele feitas em pedaços, e os grilhões, em migalhas, e ninguém o podia amansar. 5 E andava sempre, de dia e de noite, clamando pelos montes e pelos sepulcros e ferindo-se com pedras. 6 E, quando viu Jesus ao longe, correu e adorou-o. 7 E, clamando com grande voz, disse: Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes. 8 (Porque lhe dizia: Sai deste homem, espírito imundo.) 9 E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos.

Marcos, 5:1-20 (Almeida Revista e Corrigida)

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A Democracia moderna é mantida pela forte noção de inclusão social; de direitos humanos e liberdade, sem os quais ela cede lugar ao autoritarismo, às ditaduras, à barbárie.

Pela nossa Constituição as pessoas são livres para escolher o caminho que quiserem no campo político; no campo social; nas diversas manifestações religiosas; na organização de grupos de interesses diversos; nas escolhas pessoais sob o amparo da lei. Nosso pacto social e o nosso ordenamento jurídico garantem esses direitos.

Contudo, sabemos que a Democracia nunca estará pronta e acabada. Sempre haverá mudanças pelas demandas do povo que a modificará conforme suas conveniências e superações. E por ser uma construção, ela pode sofrer recuos e até desaparecer pelo surgimento de grupos avessos aos princípios democráticos e que querem impor regimes autoritários, ditaduras que funcionam com grande violência e exclusão dos que não pensam como eles.

Volto aos demônios...

Algumas denominações religiosas têm por vocação a ideia de “verdade absoluta”. E por ser absoluta, a crença nessa “verdade” é excludente; não flerta com a liberdade e nem com outras visões de mundo. Essa exclusão do outro diferente é antidemocrática por excelência. E eu diria antiespiritual, porque não se baseia no espírito fraterno e cooperativo.

Aonde quero chegar?

Recentemente, alguns pastores, sobretudo de igrejas neopentecostais – e não todos - decidiram investir no discurso de ódio contra aqueles que não pensam e/ou não comungam de suas convicções e ideais; como se os excluídos de sua bolha de crenças fossem demônios e assim os rotulam com a marca da maldição eterna. Uma espécie de inquisição[2] repaginada.

Onde entra a democracia nessa história?

Devido ao grande número de evangélicos dessa vertente protestante neopentecostalista e reacionária, essa mentalidade acaba redundando em ameaças à democracia, porque facilmente se misturam religião e política, e perde-se a noção de laicidade do estado. Nunca é demais lembrar que o estado democrático deve ser laico incluindo cristãos, muçulmanos, budistas, taoístas, ateus, agnósticos, seguidores de religiões de origem e conotação africanas, palmeirenses e corinthianos, inclusive extraterrestres (se houverem). Toda forma de impedimento, guardada a observância da lei, será antidemocrática e, também, preconceituosa; portanto, antiespiritual.

Chego ao ponto:

Dia desses, fui a um supermercado fazer algumas compras e decidi trazer algumas garrafas de cerveja zero álcool, marca muito conhecida internacionalmente. No rótulo dessa cerveja tem uma estrela vermelha igualzinha à estrela do Partido dos Trabalhadores. Ao passar pelo caixa – uma moça – brinquei dizendo: “eu só comprei essa cerveja, porque tem a estrela do PT”. Ao dizer isso, a moça me olhou com cara de espanto e fez um gesto como se estivesse diante do endemoninhado gadareno possuído por uma legião de demônios. Só faltou dizer Vade retro, Satana.[3] Sorte minha que não havia porcos por perto (risos).[4]

Conclusão: os presbíteros fizeram um bom trabalho de demonização do outro que está fora de sua bolha. Contudo, o corpo de Jesus estaria estrebuchando no túmulo se ele não o tivesse tirado de lá pela ressurreição. Além disso, dá para ouvir o choro e ranger de dentes de Sólon e Clístenes[5], ambos formuladores da democracia em Atenas.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Em tempo: Apesar de imaginar que, num futuro próximo, serei recepcionado por Cérbero [6] abanando o rabo para mim, conforme expectativa desses grupos reacionários, tomei minha cervejinha sem nenhuma culpa.



[1] Natural da cidade de Gadara, no tempo de Jesus, Gadara fazia parte de uma confederação de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Citópolis, Gadara, Hipos, Díom, Pela, Galasa (Gerasa) e Canata), chamada de Decápolis. Hoje leva o nome de Umm Qais é uma cidade na Jordânia localizada no sítio das ruínas da cidade romano-helenística de Gadara.

[2] A Inquisição, ou Santa Inquisição, foi um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana cujo objetivo era combater a heresia, blasfémia, bruxaria e costumes considerados desviantes.

[3] Vade retro, Satana é uma locução latina que significa: “Retira-te, Satanás! Também pode significar repulsa ou desagrado.

[4] No relato dos evangelistas, Jesus manda que os demônios que atormentavam aquele homem enlouquecido se apoderassem de alguns porcos da redondeza.

[5] Sólon foi um estadista e legislador grego; Clístenes foi um político grego antigo que levou adiante o trabalho de Sólon. Ambos viveram, aproximadamente, 500 anos a.C.

[6] Cérbero, na mitologia grega, era um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do mundo inferior.

Comentários

  1. Parte 1. Se, antigamente no mundo grego, demônio tinha outra interpretação (tese) e pós cristianismo (antítese) adquiriu outro sentido penso que a síntese se tornará uma atualização 'melhorada'.

    Parte 2. Mentes simples, via de regra, são maniqueístas, pois é mais fácil lidar apenas com o OU - o bem ou o mal. Só que a realidade é complexa e nós somos mescla de sombra E luz.

    Parte 3. Minha adaptação à frase: E aqueles que foram vistos 'bebendo' foram julgados insanos por aqueles que não podiam apreciar a 'liberdade consciencial'.

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