
Arte: Tiago Spina
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Carlos Drummond de Andrade
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Encontrei
hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado. Cada um me
contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade.
Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a
razão. Não era que um via uma coisa e outro outra, ou um via um lado das coisas
e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exatamente como se haviam
passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro. Mas cada um via
uma coisa diferente, e cada um portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta
dupla existência da verdade.
Fernando
Pessoa
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Acordei pensando em desistir de publicar textos onde faço
críticas ao movimento espírita que aí está. De falar para um público mais amplo.
De mudar o título do Blog para “Espiritualismo debatido”[1],
mas...
Ruminei, ruminei e concluí que, nesta altura, não dá para
voltar atrás e refazer exageros e equívocos, injustiças até, cometidos por mim.
Não sou máquina em que opera exclusivamente pela lógica. Sou um ser atravessado
por acertos e erros, conflitos, paixões, desejos, culpas, memórias,
arrependimentos e esperança. É assim que um ser humano comum se comporta e se
distingue: pela luta constante em administrar todos esses afetos tristes e/ou
alegradores como diria Espinosa[2].
Creio eu que, aqueles que se lançam ao empreendimento de
eliminar todos esses sentimentos que vão na alma humana numa aventura dita
espiritual – também entendida como “reforma íntima” - na qual higieniza o
espírito purificando-o, santificando-o com penitências, resignações, mais não
fazem que recalcar mais e mais o que não tem como excluir – que são próprias de
nossa essência e substância; e que darão com os burros n´água caso insistam. A
Natureza - e embutida nela a natureza humana, não se dobra a essa aventura
quixotesca[3].
Alguém muito sábio já disse: “a negação do que se é, é a
quintessência[4] do
ateísmo”, ou seja, quem nega a obra, nega o criador.[5]
Muitas falas, dentro do que costumo chamar “movimento
espírita” vão nessa linha e me dão nos nervos, porque um dos pilares da
Filosofia espírita é promover a noção de “natureza”, de “natural”, de que tudo
aquilo que o Livro dos Espíritos fala não tem nada de sobrenatural como um
punhado de ignorantes acredita. Ignorantes letrados, inclusive.
Meu foco, portanto, é o de promover um clima de debate para o
desenvolvimento de um espírito crítico dentro desse movimento no qual ainda me
incluo, por enquanto; até que provem o contrário.
Se em algum momento fiz críticas a esse ou aquele personagem
do movimento espírita foi com a intenção de confrontar ideias e não pessoas.
Assim como as minhas, as ideias dos outros podem ser confrontadas. E daí, qual
é o problema?! A vida é dialética; não é via de mão única, de uma só direção,
de um só pensamento, de só uma tribo. Todo espírita que leu O Livro dos Espíritos
tem de entender e compreender isso.
Quando faço críticas, salvo engano, sempre as ponho em
direção ao chamado “movimento espírita” que é substantivo abstrato. E
mais, quando faço, não o faço como alguém dono de uma verdade absoluta,
incontestável, imexível. Não! Faço-o para ampliar a discussão e o
entendimento – coisa muito rara no meio espírita.
Confesso, não estudei toda a obra de Kardec (leia-se “estudar”
é diferente de “ler”). Para mim, bastou estudar o básico: O Livro dos
Espíritos; O Livro dos Médiuns; O Evangelho Segundo o Espiritismo (este último
com muitas ressalvas). No meu entendimento, o resto é perfumaria (sem negar que
perfume, muitas vezes, é necessário). Dora Incontri vai dizer numa entrevista: "das obras de Kardec, O Livro dos Médiuns é o que menos envelheceu”[6]
– o que entendo que as outras obras envelheceram mais, segundo o critério daquela estudiosa.
E insisto na ideia de lançar discussões e polêmicas – no sentido
positivo do termo – apostando na possibilidade de sairmos de determinadas
bolhas conceituais mesmo que isto possa provocar afetos tristes e dissonâncias cognitivas[7]
em alguns, ou até que eu desista de vez de discutir doutrina espírita do lado
de dentro.
[1]
Kardec fez uma
distinção entre Espiritualismo e Espiritismo. Neste há elementos específicos
que o diferenciam do Espiritualismo que abrange muitas cosmovisões.
[2] Baruch Espinosa foi um
importante filósofo holandês (1632-1677) vai falar sobre os afetos em sua obra “Ética”.
[3] Aqui o termo é
utilizado como “alguém desligado da realidade”.
[4] Aquilo que caracteriza
um grau elevado de uma coisa.
[5] Em outras palavras: O
homem é obra de Deus; o homem que nega a si mesmo estará negando a quem o
criou; portanto, Deus.
[7] Em poucas palavras, é
o mal-estar provocado por um conflito entre o que a pessoa pensa, sente e faz.
A escrita é um desbravar de caminhos. Sorte daqueles que podem te ler, seja no humor agridoce, na poética do dia a dia ou no nigredo da alma que é inexorável à humanidade.
ResponderExcluirEita, quando eu crescer quero escrever assim também
ResponderExcluirBolhas me remetem às de sabão, coloridas, flutuantes e fascinantes!!
ResponderExcluirE, igualmente, me endereçam aos planetas do sistema solar.
Enquanto as primeiras são mais efêmeras e fugazes os últimos duram um bocado de tempo.
Com isso a dualidade das opiniões transitórias em contraposição às idéias duradouras.
Nem todas as doxas se tornam conceitos, pois na maior parte ficam no nível particular. Já as "coisas concebidas" portam universalidade porque são debatidas em fundamentação racional e lógica.
Por isso mantenhamos fôlego ao que, de fato, importa!