13/11/2022
Conta-se
que Henry David Thoreau[1] já muito doente, recebeu a visita de um
pastor que lhe ofereceu o viático[2] - espécie de preparo da viagem para o outro
mundo. Ao final de sua explanação, o pastor, referindo-se ao mundo espiritual, pergunta-lhe:
“você não acha este mundo que descrevi um mundo maravilhoso para aonde todas as
almas se dirigem depois da morte? E Thoreau respondeu: “talvez, talvez, porém
um mundo de cada vez”.
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O Diabo
é o mais poderoso e o mais importante auxiliar de Deus.
Poderoso,
porque sua principal ferramenta de trabalho é o medo. Medo que está sempre,
sempre e sempre no horizonte do crente que, apesar do mal-estar[3], comporta-se com obediência e temor e
tremor às regras que lhe são impostas por um livro sagrado qualquer, renunciando
a sua vontade para a manutenção de sua salvação.
Esse
medo difuso – que não se sabe onde começa e onde termina, faz dele – o crente –
um forte candidato a uma vaga no mundo de regeneração[4] Desse modo estaria ele livrando-se do
expurgo daqueles não aptos à suposta transformação do mundo onde não mais haveria
corrupção, guerras, conflitos, doenças degenerativas, depressão, preguiça,
sarampo e crediário, boletos e trânsito parado; ou seja, um mundo pós-humano.
Essa é
a essência e substância do marketing voltado para o consumidor da ideia de
transição planetária: um grande parque temático cheio da felicidade das
formigas obreiras e obedientes que se separaram, definitivamente, do canto
insuportável das cigarras negligentes e irresponsáveis[5].
Respondida
à pergunta do porquê o Diabo é o mais poderoso auxiliar de Deus, tentemos responder o porquê ele
é o mais importante.
Porque
o Diabo faz o serviço sujo: mete a mão na lama pútrida da consciência humana e
promove a faxina geral chamada “transição planetária” sem riscar a fama divina
de ser sumamente boa e misericordiosa.
Mas essa conversa é mais para os metafísicos. Deixemos a cargo deles discutirem sobre isso.
Que tal deixarmos de lado essa ideia infame da tragédia anunciada pelos profetas modernos - a tal da "transição planetária" e nos concentrarmos no pagamento dos boletos que vencem amanhã e fazer como Thoreau: pensar num mundo de cada vez.
Com isso, deixamos de correr o risco de viver uma vida insossa, sem cores, em branca nuvem[6] em nome de um lugar improvável de um mundo indefinido.
Há muito o que fazer aqui e agora.
Caso insista na aposta da transição planetária, sugiro pegar o hinário ou livro sagrado de sua preferência; orar; e tocar um tango argentino.[7]
[1]
Henry David
Thoreau
(1817-1862) poeta, naturalista, historiador, filósofo e transcendentalista. Conhecido
por seu livro Walden, uma reflexão sobre a vida simples cercada pela
natureza, e por seu ensaio A Desobediência Civil.
[2] Viático: sacramento da comunhão ministrado em casa aos
enfermos impossibilitados de sair ou aos moribundos.
[3]
Ideia posta num
importante ensaio de Sigmund Freud Mal-estar na civilização onde ele
propõe um conflito inescapável entre as pulsões instintivas e a vida civilizada
com suas imposições de regras e normas as quais preveem punições e castigos
àqueles que não as cumprirem.
[4]
A Doutrina
Espírita propõe uma escala de mundos que vai de “mundo primitivo” até o “mundo
feliz”. Entre essas duas condições, haveria um gradiente que passa pelo “mundo
de provas e expiações” – este em que vivemos, que deverá atingir o grau
imediatamente superior que configura o “mundo de regeneração”. Esse processo é
chamado de “Transição Planetária”.
[5] Alusão à fábula de “A
Cigarra e a formiga” (Esopo/La Fontaine).
[6]
Referência aos
versos de Francisco Otaviano de Almeida Rosa: Quem passou pela vida em
branca nuvem/E em plácido repouso adormeceu/Quem não sentiu o frio da desgraça/Quem
passou pela vida e não sofreu;/Foi espectro de homem, não foi homem/Só passou
pela vida, não viveu.
[7] Referência a Manuel
Bandeira, Pneumotórax.
Os adeptos à transição planetária são uma espécie de neuróticos do happy end o que é, definitivamente, um paradoxo.
ResponderExcluirTransição planetária ocorre periodicamente em ciclos longos e não como muitos pensam que há de acontecer uma primeira e única vez daqui a algumas décadas (segundo a crença popular).
ResponderExcluirQuanto ao "um mundo de cada vez" vale estender para:
um propósito existencial de cada vez;
uma emoção de cada vez;
um passo largo de cada vez;
uma iguaria de cada vez;
um diálogo de cada vez;
uma leitura de cada vez e
um suspiro de cada vez.
Claro, há muito mais... Entretanto, fica para a outra vez.