O Pensador
Escultura de Auguste Rodin (1840-1917)
06/11/2022
Qual o meio prático mais
eficaz para se melhorar nesta vida e resistir ao arrastamento do mal?
— Um sábio da Antiguidade vos
disse: “Conhece-te a ti mesmo”.
Allan Kardec, O Livro dos
Espíritos, questão 919.
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A partir do momento em que lemos a provocação feita por
Kardec aos espíritos, ela ressoará em nossos ouvidos (quando atentos) até o fim
da vida.
Kardec, como bom pensador, vai insistir perguntando qual o
caminho para o autoconhecimento, na questão seguinte. (quem quiser saber mais,
sugiro consultar o citado livro, questão 919a.).
O autoconhecimento
Obviamente, esse autoconhecimento não é o do Millôr
Fernandes: “autoconhecimento se aprende na autoescola”. Não!
Trata-se do conhecimento de si mesmo; e um dos caminhos é
fazer uma autobiografia honesta.
Curriculum vitae versus Curriculum mortis
Por que honesta? Porque lembrei-me de Sérgio Besserman[1]
falando sobre Curriculum Vitae - aquele relatório no qual apresentamos
em entrevistas nos departamentos de Recursos Humanos e que tem por função resumir
tudo o que fizemos e que deu certo. Besserman, com fina ironia vai dizer que,
para sermos honestos, deveríamos apresentar, também, o nosso Curriculum
mortis – tudo o que deu errado. Todo mundo sabe que é fatal mentir numa
entrevista para um emprego, mas...
Hoje, as técnicas para sacar informações do candidato a uma vaga
são mais sofisticadas que no meu tempo em que os currículos eram datilografados
e cópias eram mimeografadas. Têm empresas que lançam mão até de mapa astral
para descobrir falhas de caráter ou tendências antissociais do infeliz do
candidato. Com o andar da carruagem, daqui a pouco, teremos de registrar qual
orientação religiosa e política possuímos; se acreditamos em Terra plana ou
arredondada e por aí vai...
Autobiografia breve
A exemplo do poeta maior – mas guardando as devidas
proporções, desconfio que quando nasci um anjo me disse para ser gauche na vida[2].
Caminhada difícil comigo e minhas circunstâncias[3]
(e minhas peculiaridades).
Carreguei muito ressentimento; hoje, menos, apesar de, esses poucos que sobraram, eu os ter
em grande estima (risos).
Como todo ser humano, e possuir os movimentos peristálticos
funcionando bem, fiz lá as minhas besteiras de praxe[4].
Depois de ter estudado um pouco mais e fora da caixa
cristã-evangélica que, dependendo da maneira como é interpretada, coloca um
enorme fardo de culpa sobre os ombros do fiel, sinto uma espécie de gozo
pós-análise e mais aliviado por saber que, como eu, todos os humanos normais sofrem
conflitos internos inescapáveis[5].
Talvez, não sei, esse argumento sirva para compensar a inveja que sentimos uns
dos outros como já dizia La Rochefoucauld:
A inveja é um furor que não
consegue suportar o bem dos outros[6].
É claro que a inveja avança em mim quando penso que morrerei
sobre lençóis de baixa qualidade, enquanto os ricos em lençóis egípcios de mil
fios numa hotelaria hospitalar de fino trato, mas isso é compensado por
imaginar que corpos de ricos e pobres serão “tratados” indiferentemente pelos
saprófitos[7]
- ao menos o estudo de biologia valeu para alguma coisa (risos).
De novo evoco La Rochefoucauld:
nossa inveja dura sempre mais
tempo que a felicidade daqueles que invejamos[8].
Chego
às portas da envelhescência – nome chique para velhice – algo remediado: tenho
vontade de muita coisa, mas não falta o necessário. De novo o velho e bom La Rochefoucauld:
A velhice é um tirano que
proíbe, sob pena de morte, todos os prazeres da juventude.[9]
Carrego algumas frustrações das quais me ocorrem duas: não
ter conseguido montar uma maquete de ferreomodelismo e de não assistir a um
reencontro dos Beatles antes da morte de John Lennon.
Uma preocupação: antes de morrer tenho de odiar menos e
invejar menos ainda. De novo, o velho e bom La Rochefoucauld vem em meu socorro:
A inveja é mais
irreconciliável que o ódio.[10]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Sérgio Besserman Viana
é um economista brasileiro.
[2]
Poema de Sete
Faces,
Carlos Drummond de Andrade. A palavra francesa “gauche” significa “esquerdo”,
mas no poema é uma metáfora para “estranho”, “contrário”; alguém que anda na
contramão da maioria.
[3]
Referência à expressão
“Eu sou eu e minha circunstância” contida na obra Meditações do Quixote
de José Ortega y Gasset.
[4]
Os movimentos
peristálticos são movimentos musculares, independentes, que no sistema
digestório garantem o trânsito do que se ingere e o descarte do material não
digerido (excreção das fezes).
[5] Uma sugestão de
leitura seria “Mal-Estar na Civilização”, Sigmund Freud.
[6] Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais, François La Rochefoucauld (1613-1680), moralista francês. Sentença nº 28, Penguin & Cia das Letras.
[7] Saprófitos:
seres vivos, sem clorofila, que se alimentam de matéria orgânica em
decomposição.
[8] Reflexões ou Sentenças e Máximas Morais, François La Rochefoucauld (1613-1680), moralista
francês. Sentença nº 476, Penguin & Cia das Letras.
[9] Idem, Sentença 461.
[10] Idem, Sentença 328.
Sagazes o pensamento do inesquecível Millôr e o do curriculum mortis!! Uai! O que o impede de montar a maquete? Ainda há tempo, meu caro! No meu caso estou na incessante busca da descoberta, logo há muitas laudas a serem preenchidas. Hê! Hê!
ResponderExcluirPrezada professora, não me falta tempo; falta espaço rsrs Abraço
Excluir" O sentimento é a coisa mais fina do mundo "
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