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A DÚVIDA

Arte: Tiago Spina

A dúvida é muito mais criativa que a certeza, mas eu não tenho muita certeza disso.

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Frase que li num jornalzinho de São João da Boa Vista, há muitos anos. A ironia nela contida me lembrou Emil Cioran[1]: “convictos são aqueles que não aprofundaram em nada”.

Costumo dizer aos espíritas que me ouvem: as escolas espíritas pecam em não exercitar a dúvida, mas de distribuir certezas.

Não se trata da dúvida via negacionismo – uma forma estúpida de duvidar, mas a dúvida metódica, à la Descartes, própria do exercício filosófico.

Para corroborar o meu argumento, digo-lhes – aos espíritas que me ouvem – que é só verificar a estrutura que Kardec deu ao O Livro dos Espíritos[2]: 1019 dúvidas com desenvolvimentos em algumas delas, ou seja, em média as publicações deste livro possuem 400 páginas o que equivale a mais de duas dúvidas por página. O recado está dado.

Volto à frase de Cioran: quando nos aprofundamos em determinado tema, seja qual for, a tendência é de perplexidade e não de acomodação. A inquietação da alma faz com que procuremos uma outra explicação, um outro modelo de raciocínio, uma visão por outro ângulo. É um desafio, porque, como dizem os psicanalistas, o Eu gosta de coisas conhecidas[3]. Os traumas surgem de situações inesperadas. Naturalmente, fugimos da dúvida.

Para fechar, vou lembrar da velha e batida frase de Sócrates: “só sei que nada sei”. Cabe a pergunta: Será que Sócrates nada sabia? Claro que sabia! E é por conta de sua sabedoria é que sabia do tamanho de sua ignorância. Traduzindo: Sócrates sabia tanto que tinha a aguda noção do enorme tamanho do desconhecido[4]. Em outras palavras, Sócrates desconfiava do próprio saber.

Sócrates e Cioran dão-se as mãos.

Se você ainda não percebeu, essa dúvida a que me refiro deve começar sempre por nós mesmos. Desconfiar de si[5] é um bom exercício epistemológico[6] com uma boa dose de Ceticismo[7].

SEM MARGEM A DÚVIDAS

Se você ainda mantém
A intenção moral-visual
De só encarar homens de bem
Segue este meu conselho:
Sai da rua,
Vai pra casa,
Tranca a porta
E quebra o espelho.

Millôr Fernandes

 

Aí pergunto aos cheios de certezas: precisa desenhar?



[1] Emil Cioran: filósofo romeno radicado na França (1911-1995).

[2] O Livro dos Espíritos foi o primeiro livro publicado por Hippolyte Léon Denizard Rivail com o pseudônimo Allan Kardec. Editado em 1857, é considerado o livro base da Doutrina Espírita.

[3] O arcabouço teórico de Freud o levou à conclusão de que devemos evitar as certezas.

[4] É comum, entre pesquisadores, a noção de que a bolha do conhecimento, aumentada por novas descobertas, aumenta o perímetro entre o conhecido e o desconhecido. É o paradoxo de que quanto mais se sabe, menos se sabe.

[5] Desconfiar de si não é o mesmo que subestimar-se, mas uma boa vacina para o orgulho e a prepotência que seria o oposto da subestimação que se configura na superestimação.

[6] Referente à Epistemologia: estudo crítico de tratados, hipóteses etc.

[7] Referente à Escola Cética criada por Pirro de Élis (360 a.C – 270 a.C.).

Comentários

  1. De fato, amigo Humberto, a dúvida é a primeira certeza de acordo com Descartes. É por meio da dúvida que ele consegue elaborar, copiando de Santo Agostinho, o cogito ergo sum. Pois, se duvido é porque penso e se penso, então, existo. Interessante que o filósofo africano já havia elaborado este pensamento em seu escrito a Trindade. E ainda há quem pense que Descartes foi original. Então, você tem razão: é preciso duvidar... :-)

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  2. No senso comum a dúvida não é bem vista, ao contrário da sapiência.
    Tanto que ilude-se quem não busca questionar com receio de ser interpretado como ignorante.
    Quem não se envergonha de ir atrás do conhecimento assemelha-se ao pão levedado. O contrário, um pão asmo.
    Sejamos bagel.

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