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GOTAS (AZEDAS) DO EVANGELHO

 

Rapadura é doce, mas não é mole.

https://espiritismosec21.blogspot.com/2019/09/rapadura-e-doce-mas-nao-e-mole.html

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O Evangelho – palavra vinda do grego e que significa “boa nova” ou “boa notícia” não é tão boa assim para um punhado de gente; inclusive gente que se diz cristã esclarecida.

A leitura que faço dessa notícia trazida por Jesus, está ligada a algumas passagens em que fica claro que essa iluminação, essa salvação, essa felicidade, ou numa linguagem mais adequada a vida boa, estaria submetida à vontade de cada um de acordo com as Leis Morais elencadas pelos sábios. Portanto, e isso é relevante, o caminho da vida boa está diretamente ligado à ação individual – diria Santo Agostinho do uso do livre arbítrio, ou seja, depende de cada um escolher o que fazer sem a sujeição cega da vontade de um deus caprichoso e ciumento, mas às Leis Universais; exceção feita à contingência que é dada e não escolhida.

Exemplos disso?

Exemplo 1: Lucas, 17:20-21:

“Naquele tempo, os fariseus perguntaram a Jesus sobre o momento em que chegaria o Reino de Deus. Ele respondeu: 'O Reino de Deus não vem ostensivamente. Nem se poderá dizer: Está aqui, ou: Está ali, pois o Reino de Deus está no meio de vós'”

Exemplo 2: A Bíblia King James (1611) consta o termo “dentro” no lugar de “meio”.

nem eles dirão: Ei-lo aqui! Ou: Ei-lo ali! Porque eis que o reino de Deus está dentro de vós.

Exemplo 3: A King James está de acordo com a Vulgata[1] de São Jerônimo (tradução para o Português de 1885 por Antonio Pereira de Figueiredo, Lisboa):

20 E tendo-lhe feito os Fariseos esta pergunta: Quando virá o Reino de Deos? Respondendo-lhes Jesus, disse: O Reino de Deos não virá com mostras algumas exteriores:

21 nem dirão: Ei-lo aqui, ou ei-lo acolá. Porque eis-aqui está o Reino de Deos dentro de vós.

Não é nova a discussão sobre essa tradução, mas se levarmos em consideração o que disse Chesterton[2] em seu “Por que sou católico” em que fala da dificuldade que tinha em explicar o porquê era católico, ele respondeu: “há muitas razões, mas cito uma: a Igreja Católica é a única que (...) assume a grande tentativa de mudar o mundo desde dentro; usando a vontade e não as leis...”[1]

No site “O Fiel Católico”, essa questão é posta no artigo intitulado Regnum Dei intra vos est – O Reino de Deus está dentro de vós (link abaixo)[3]

Felipe Marques, o articulista, informa que “a tradução do grego ἡ βασιλεία τοῦ θεοῦ ἐντὸς ὑμῶν ἐστιν para o português do Brasil desta passagem muitas vezes é equivocada. O uso correto não é exatamente: “está no meio de vós” como muitas vezes se usa, dando sentido de que o Reino de Deus está no meio de um [...] coletivo. O mais correto é que o Reino de Deus está realmente dentro de nós, no interior de cada um!”

Estou de acordo com Felipe Marques, porque São Jerônimo autor da Vulgata utiliza a expressão latina “intra” o que indica “dentro” e não “no meio de”.

À parte a interpretação que a Teologia Católica dá a este trecho de Lucas, o fato é que Jesus está dizendo que o Reino está DENTRO e não FORA. Jesus é enfático: “O Reino de Deus não vem por aparência exterior”. É como se Jesus, sabendo da importância dessa informação, levasse, os que o ouviam, pela mão no limite da demência - como diria Clóvis de Barros Filho para os seus alunos de graduação.

Então, caro leitor, essa é a premissa maior: depende de cada um e não da vontade alheia, venha ela de onde vier.

Exemplo 4: Outra passagem, também de Lucas, 9: 23:

Jesus dizia a todos: "Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz e siga-me.

Ou seja, não tem almoço grátis. Você tem de tomar sua vida em suas mãos – e não é de vez em quando, mas sempre como indica o advérbio “diariamente”. Você deve ser autor e executor de sua história. Para os preguiçosos e mimadinhos de plantão esse discurso tem gosto azedo.

Se sua vida não estiver sendo construída por você, segundo Jesus, alguma coisa está errada.

Exemplo 5: Outra passagem, essa de Mateus 10:22:

E sereis odiados de todos por causa do meu nome, mas aquele que perseverar[4] até o fim, esse será salvo.

Certamente Jesus antevia o que os seus discípulos deviam esperar. É bom suspeitar que esta advertência é extensiva a todo aquele que quer ter uma vida autoral e ética. E levar a sério até o fim, como o étimo do verbo "perseverar" indica.

Outro detalhe que salta aos olhos nessa passagem do Evangelho é a dificuldade que enfrentam os narcisistas contemporâneos que querem, o tempo todo, aumentar o número de likes e que, ao menor sinal de um dislike, têm piti[5] e pedem colo.

O pedido do Cristo em “negar-se a si mesmo” pode ser interpretado como desativação do narcisismo como transtorno.

Todas essas passagens mostram com clareza que a chamada “boa nova” tem a ver mais com compromisso, responsabilidade e coragem do que mimos. Vale frisar que essa coragem não é a coragem do bando; tem de ser individual, porque o Reino de Deus está dentro de cada um, ou seja, manifesta-se individualmente, e não na tribo. É fácil e, até atávico, criarmos coragem quando estamos em grupo. E é exatamente aí que mora o problema em aceitar um entendimento mais profundo do Evangelho, principalmente em tempos em que reina a busca da felicidade de maneira imediata com a satisfação de direitos tão lembrados e de deveres tão esquecidos.

Essa é só a ponta do iceberg para desespero dos que procuram mimos e cafunés do Papai do Céu, Jesus, espíritos, santos, gurus e papai Noel.

“As gotas do Evangelho” as quais tanta gente prega com voz em tom pastoso e suplicante para um público que busca, ávido, por conforto e solução milagrosa acaba transformando-se em gotas azedas quando fazemos uma leitura “diferente” do habitual.

Quando negamos o que aí está, a realidade dá um vigoroso pontapé na porta de nossa existência sem avisar e sem pedir licença.

Pascal é atualíssimo quando fala de diversão e tédio: “não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não mais pensar nisso.”

Se vivesse hoje, Pascal diria: “para não pensar nisso”, ou seja na realidade, “se divertem maratonando o streaming[6], caso contrário, o tédio invadiria a vida.”

E como dizia Jesus: “o último estado do homem será pior do que o primeiro”.[7] E por quê? Porque quem habita “a casa” ainda não descobriu o Reino de Deus dentro dela e vive de aparências, divertimentos e autoengano.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Em tempo: a advertência do Cristo em Mateus 6:33: "buscai o Reino de Deus e sua Justiça, e as demais coisas lhes serão acrescentadas" parece próxima da advertência posta no portal do Oráculo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses". Jesus teria feito contato com o pensamento grego, ou tudo não passa de influência da patrística ao cristianismo primitivo? Ou, ainda, apenas uma viagem na maionese feita por mim?


[1] Vulgata: a tradução da Bíblia do grego e do hebraico para o latim feita por São Jerônimo entre fins do século IV início do século V, a pedido do Papa Dâmaso I, que foi usada pela Igreja Cristã Católica.

[2] Gilbert Keith Chesterton, KC*SG, mais conhecido como G. K. Chesterton, foi um popular ensaísta, romancista, contista, teólogo amador, dramaturgo, jornalista, palestrante, biógrafo, e crítico de arte inglês. 

[4] Do Latim PERSEVERARE, “manter-se firme, persistir”, formado por PER, “totalmente”, mais SEVERUS, “estrito, sério”.

[5] PITI ·sm: COLOQ Ataque histérico ou nervoso; chilique, escândalo, faniquito: A mulher deu um piti terrível quando a costureira lhe disse que seu vestido não estava pronto. (Dicionário Michaelis).

[6] Streaming: Plataforma como a Netflix que utiliza tecnologia para transmitir filmes, séries etc. Maratonar: termo utilizado para indicar o uso dessas plataformas para assistir a séries inteiras de uma só vez. Haja pipoca.

[7] Lucas, 11:24-26: “Quando um espírito imundo sai de um homem, passa por lugares áridos procurando descanso, e, não o encontrando, diz: ‘Voltarei para a casa de onde saí’. Quando chega, encontra a casa varrida e em ordem. Então vai e traz outros sete espíritos piores do que ele, e entrando passam a viver ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro”.

Comentários

  1. Estimado amigo Humberto, aprecio o destaque inicial: "[...] o caminho da vida boa está diretamente ligado à ação individual". Embora reconheça a dimensão individual, aliás, base de minha concepção de educação aristocrática (https://www.amazon.com.br/Aristocratic-education-Nietzsche-English-Mendon%C3%A7a-ebook/dp/B07D6FJWCW), retomo a Alegoria da Caverna de Platão, livro VII de A República (http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf). "Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer as olhos para a luz". O termo "obrigado" evidencia ausência de individualidade ou de autonomia do prisioneiro, logo, se não há o outro para nos direcionar para as "luzes", será que temos mesmo condição de tomar ações que nos façam alcançar a eudaimonia? Eis minha tentativa de contribuição ao debate... Abraços!!

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  2. Apesar de serem azedas as gotas, desta forma me convencem...de outra forma o discurso soa irreal e hipócrita...
    Certeiro...
    Obrigada, humberto!!

    ResponderExcluir
  3. Caro Humberto,

    Ler as suas reflexões é adentrar num Jardim de pensamentos instigantes, sérios e, claro, humorados ("não tem almoço grátis!!! rsrs).

    Desconfio que ingerimos as gotas 'azedas' de "nariz tampado" para não sentir o gosto ou acrescentamos algo junto para disfarçar o sabor.

    Azedaram porque deixamo-las expostas à céu aberto, e por serem difíceis de prová-las, preferimos as gotas doces e salgadas, ou até as agridoces, numa acomodação consciencial.

    Deixemos os narcísicos se alimentarem virtualmente e cuidemos de nutrir o substancial ao nosso desenvolvimento espiritual.

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