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A BARREIRA DO SOM (das palavras)

 

Uma espiritualidade baseada na preocupação em pagar em dia a fatura do Visa (ou outra bandeira qualquer de sua preferência)

Voos em velocidades supersônicas têm uma característica importante que é o estrondo provocado pela ultrapassagem da “barreira do som” (Isto se deve às ondas de choque que são formadas pela reflexão do meio gasoso sobre a superfície do objeto em voo)

Revista Brasileira de Aplicações de Vácuo, v. 27, n. 1, 5-10, 2008.

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Acho que eu ultrapassei a barreira do som (das palavras) sem estrondo e sem estalo.[1]

Palavras que me dizem com certeza pétrea que há um destino e ele é claro como neve.

Essa certeza alimentada pela crença na vida depois da morte com sua geografia milimetricamente narrada de lugares, motivos, sentimentos com os quais as criaturas sobreviventes da morte estarão sujeitas, lá no dito mundo espiritual.

Não me enquadro mais nesse tipo de crença, por tocarem nos limites da fantasia. Contudo, há em mim, ainda, a crença de que o ser humano é composto por espírito e matéria. Não se trata de convicção adquirida por leituras, de versões de terceiros, de ouvir dizer. Trata-se de experiências pessoais marcantes em torno do fenômeno espírita. 

Essas definições dadas sobre camadas assim e assado, de lugares específicos, de gente que vai e vem, inúmeras classificações, evoluções de mundos tão difundidas na literatura espírita me causam tédio.

Por quê? Porque, neste momento – frise-se neste momento - carrego uma espiritualidade na qual não me interessam essas distrações: definições de Deus, dos espíritos, do mundo espiritual, das colônias espirituais, da historiografia pela visão de alguns espíritos e transmitidas por médiuns, ou de ambos.

Informações como essas suscitam, nas pessoas ansiosas, perguntas do tipo: “qual camada me encontro? Para mim, basta apenas saber que existe algo além dessa matéria a que estamos sujeitos. O meu interesse está aqui, no solo onde piso, enquanto aqui estiver.

Possuir grande conhecimento da literatura espírita e afins dedicadas a essas definições acima descritas, definitivamente, não muda em nada o espírito humano e nem a nossa realidade concreta, da qual muitos e muitos companheiros espiritualistas se gabam de saber – se é que sabem. Suspeito que não, mesmo dizendo que sim.

A não ser para as cartomantes, Hegel e Marx e para os aficionados em teorias da conspiração, para os cristãos em geral, que certeza temos do futuro? Neste ponto, o ditado popular é muito sábio: “o futuro a Deus pertence”.

O que a frase popular quer dizer em outras palavras é: Deus não é uma variável de controle epistemológico. Não dá para testar em laboratório (Pondé), ou seja, não sabemos nada sobre o futuro.

Viver intensamente com a perspectiva do nada, ou se quiserem do vazio, é desafiador e não é para espíritos fracos.

Por quê? Porque com essa perspectiva teremos de lidar com uma boa dose de angústia e de incertezas além das demandas e desafios da própria existência aqui na Terra. Aqui e agora. É disso que trata a espiritualidade a qual cultivo.

“Uma espiritualidade assentada no pagamento da fatura do Visa” quer dizer: mesmo tendo o “poder” de compra que o cartão confere, não contrair dívidas além do alcance. É, em outras palavras, abraçar o ideal estoico: ter o que é necessário, viver com simplicidade, cumprir com os deveres, cultivar a amizade, ter amor pelas pessoas, coisas; enfim o mundo ao redor. Não temer dizer “sim, sim; não, não” como advertira o Cristo[2]. Ter coragem para pedir desculpas e ter humildade suficiente para saber que pouco ou nada se sabe.

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Conta-se que o grande orador e pensador jesuíta Antonio Vieira (1608-1697) era muito limitado em termos intelectuais. Como fervoroso devoto da Virgem Maria pedia, constantemente, a ela que intercedesse para que pudesse desenvolver entendimento e saber. Numa dessas ocasiões sentiu um estalo dentro da cabeça. Depois desse episódio sua memória e o seu entendimento se desenvolveram com grande agudeza, tornando-o o admirável criador de “Os Sermões”.

[2] Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna. Mateus 5:37

Comentários

  1. Vc provocou estalos em nosso grupo de estudos...já é tão difícil fazer o q vc fala: tentar viver "direitinho" aqui! Quanto mais pensar em como será depois, e onde minhas ações me levarão após a morte...a questão é: onde elas me levam agora!
    Também creio no além matéria...e essa crença, no momento, já traz pensamentos demais...

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  2. As religiões são produtos culturais e cada qual caracteriza-se pelas crenças particulares.

    Infância e adolescência da humanidade são reconhecidas pela psique coletiva ainda necessitada de narrativas misteriosas (e muitas delas duvidosas).

    Viver a religião, a religiosidade ou a espiritualidade - distintas entre si - varia segundo o grau de cada consciência.

    Num mundo tão estrondoso o silêncio é singular conexão.

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  3. Humberto, sendo você um filósofo, nem sempre é fácil acompanhar seu pensar professoral, ainda mais em face de conhecimentos que não são exatamente os meus. Sobre sua reflexão, só seria viável debater pessoalmente, pois suscitam muitas indagações que iriam enriquecer minha cultura no assunto. Sua convicção sobre a existência de algo além da matéria converge para a minha concepção a respeito. Daí a justificativa de " ter o que é necessário, viver com simplicidade, cumprir com os deveres, cultivar a amizade, ter amor pelas pessoas, coisas; enfim o mundo ao redor. É difícil analisar a profundidade de um ser sábio como você; mas quem disse que é fácil? Abraço.

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  4. Correção ... pois suscita muitas indagações ...

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