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AMAR A DEUS E AO PRÓXIMO (é possível?)

 


Mestre, qual é o grande mandamento na lei? E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas.

                                                                                                              Mateus 22:36-40

Com a proximidade do Natal, tomados pela ambiência criada em torno do espírito de fraternidade universal, seja por diletantismo[1] ou pela força do marketing em torno desse momento do ano, os cristãos e até não cristãos têm arroubos[2] de ternura e de comiseração[3], mesmo que durem alguns segundos antes do rega-bofe[4].

Daí meu ímpeto em escrever sobre o que acho dessa fala de Jesus sobre a chamada “lei e os profetas”.

Todo mundo que já passou os olhos nos textos bíblicos sabe que o primeiro mandamento é referente à conduta da criatura diante do Criador. Até aqui, tudo certo com a fala de Jesus.

Ocorre que Jesus dá um passo além, introduzindo um segundo mandamento – certamente inspirado na escola de Hilel[5] – quando profere: “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E arremata: “destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas”.

Jesus faz uma redução radical em toda a Lei e aquilo que representam os profetas. Em outras palavras, caso a criatura não se deixe tomar pelo Amor (sim, com maiúscula) nada adianta observar as milhares de filigranas contidas no Levítico[6] (ou outro livro sagrado de sua preferência), somadas aos ditames deixados pela autoridade dos profetas.

Fácil? Parece, mas não é; pelo menos para mim.

Explico:

Primeiro ponto: pergunto-me como eu amo? Meu amor precisa de um objeto para fazer sentido. Com isso, constato que o meu amor obedece às regras da gramática – o que já é, de cara, um problemão. Não do ponto de vista gramatical, é claro, porque o verbo “amar” é transitivo direto. Todo verbo transitivo PEDE um objeto.

Para gente que pensa com muito mais profundidade do que eu, sabe que o amor não transita, ele é “exalado” da criatura que ama – esse é o problemão ao qual me referi acima na minha maneira de amar. Veja, quando descubro que minha forma de amar pede objeto, a chance de surgirem conflitos é grande: porque, não tendo amor de verdade, quero amar alguém que, eventualmente, não quer o meu amor - até parece coisa de Lacan.[7] E essa contrariedade deflagra em mim uma série de afetos tristes: raiva, rancor, ressentimento, desejo de revide. Esses sentimentos, além de paradoxais, são perturbadores. Minha angústia cresce, porque o outro nunca satisfará, completamente o tempo todo, as minhas expectativas.

Vejo, claramente, que uniões baseadas no amor transitivo direto, em que um é objeto do outro, haverá sempre rinhas, desacordos, mal-entendidos, gritos, agressões, punhos em riste, mortes passionais, porque o outro é instrumentalizado como fonte de felicidade do suposto amante.

Caramba, penso eu, como é difícil! E eu mesmo reajo: e quem disse que seria fácil?

Krishnamurti[8] ao ser perguntado sobre o amor, respondia mais ou menos assim : "o amor é como o perfume de uma flor que exala o seu perfume para um ou para todos indiferentemente". Quem pode estar na companhia de alguém que ama de verdade sente o aroma do amor sem que haja necessidade de demonstrações e palavrórios; sem estratégias. Krishnamurti trata o verbo amar como intransitivo. Simples assim.

Evidentemente, não se trata do verbo amar do Mário[9].

Portanto, o amor assim entendido não segue as regras gramaticais – vive como Jesus viveu, porque para o verdadeiro amante, o amor é intransitivo. Como disse São Bernardo em seu sermão: “o amor basta-se a si mesmo”; e Vieira citando o santo católico[10]:

Se amo, porque me amam, tem o amor causa; se amo, para que me amem, tem fruto: e amor fino não há de ter porquê nem para quê. Se amo, porque me amam, é obrigação, faço o que devo: se amo, para que me amem, é negociação, busco o que desejo.

 

Segundo ponto: se eu dissesse que amo a Deus que não vejo, mas odeio o próximo que está na minha frente, de carne e osso, sou um hipócrita conforme acusa João.[11] Meu suposto amor por Deus configura-se numa fantasia, porque não tenho motivos, “ferramentas”, suficientes para amar algo ou alguém que não esteja no radar dos meus sentidos, e se faço, faço-o em bases delirantes, sob pena de cair num falso silogismo do tipo:

Deus é Amor (diz João, o evangelista)

O Amor é cego (diz o ditado popular)

Stevie Wonder é cego

Então, Stevie Wonder é Deus.

(Percebe, caro leitor/leitora, a encrenca em que me coloco refletindo sobre essas questões?)

Vamos em frente...

Terceiro ponto: E quanto ao “amar o próximo como a mim mesmo”?

Bem, sei que o ser humano é intrinsecamente egoísta, ou seja, é de sua constituição biológica ser assim, portanto, o componente cultural desse comportamento não é absoluto - conforme descobertas recentes da Neurociência, sobretudo depois de estudos feitos com PETscans em que o cérebro pode ser estudado em funcionamento, os pesquisadores dessa área descobriram que muito do comportamento se deve aos chamados algoritmos orgânicos construídos ao longo de milhões e milhões de anos somados à produção dos chamados neurotransmissores. É assim que encontro explicação por ser mais interesseiro com o próximo do que interessado pelo próximo.

Toda vez que “amo”, há sempre um componente de interesse por trás, seja físico, psicológico ou transcendental. Há sempre um cálculo de mais-valia[12] nessa relação com o próximo. Para quem faz caridade, por exemplo, o lucro é a salvação.[13]

A coisa fica mais complicada quando tenho de amar o próximo como a mim mesmo. E esse amar a mim mesmo não é algo tão fácil como na canção do Ultraje a Rigor[14], porque amar é, sobretudo, compreender - é apreender o todo, e essa apreensão pode exigir dezenas de encarnações em variados divãs espalhados por aí na busca de saber o quanto o “Eu” é regido pelo inconsciente. Não há solução no horizonte...

Para complicar mais ainda, a palavra cria o conceito de “amor”. Sabe-se que conceitos são estanques, fixos e eu intuo que amar deve ser algo dinâmico, não estático[15]. A vida, que é pura dinâmica, é alimentada pelo motor do amor.[16] É difícil definir o amor:

Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É Espírito, é éter, é substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
É a transubstanciação de instintos rudes,
Imponderabilíssima, e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!

                            Versos de Amor, Augusto dos Anjos, Eu e outras poesias

Ora, se toda a Lei e os profetas estão contidos nesta premissa “Amar a Deus de todo o meu entendimento, e amar o próximo como a mim mesmo”, concluo que, para os cânones do Cristianismo estou perdido.

Depois de tudo isso, resta para mim, apenas, dançar um tango argentino.[17]


[1] Diletantismo: aqui considerado como “dedicação a alguma coisa somente pelo prazer que ela lhe proporciona”.

[2] Arroubo: Arrebatamento; expressão ou demonstração de êxtase, de enlevo ou de encanto; num arroubo de felicidade, cantou bem alto.

[3] Comiseração: Sentimento de compaixão (dó) diante dos problemas alheios; que sente pena pelo sofrimento de outra(s) pessoa(s); misericórdia.

[4] Rega-bofe: Festança; festa repleta de comida e de bebidas.

[5] Hilel (110 a.C – 10 d.C.) utilizava a analogia e a alegoria para adaptar a Torá ao seu objetivo, resumido na regra áurea de “O que for odioso a você, não faça a seu próximo; isso é toda a Torá”

[6] Terceiro livro da Bíblia hebraica; contém inúmeras regras e práticas rituais.

[7] Referência a Jacques Lacan: “amar é dar o que não se tem...a alguém que não quer.” Eu disse que parece, porque o que Lacan disse, foi dito em outro contexto.

[8] Jiddu Krishnamurti (1895-1986) filósofo, escritor, orador e educador indiano. “Não buscar o amor é a única maneira de encontrá-lo; encontrá-lo inesperadamente e não como resultado de qualquer esforço ou experiência. Esse amor, como vereis, não é do tempo; ele é tanto pessoal como impessoal, tanto um só como multidão. Como uma flor perfumosa, podeis aspirar-lhe o perfume, ou passar por ele sem o notardes. Aquela flor é para todos e para aquele que se curva para aspirá-la profundamente e olhá-la com deleite. Quer estejamos muito perto, no jardim, quer muito longe, isso é indiferente à flor, porque ela está cheia de seu perfume e pronta a reparti-lo com todos.”

[9] Referência ao romance “Amar, Verbo Intransitivo” de Mário de Andrade.

[10] Padre Antônio Vieira, foi um filósofo, escritor e orador português da Companhia de Jesus. Uma das mais influentes personagens do século XVII em termos de política e oratória, destacou-se como missionário em terras brasileiras.

[11] Se alguém declarar: “Eu amo a Deus!”, porém odiar a seu irmão, é mentiroso, porquanto quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não enxerga. (Primeira Carta de João 4:20 – Novo Testamento)

[12] Lucro, segundo Karl Marx.

[13] Conforme Allan Kardec, Capítulo XV de O Evangelho Segundo o Espiritismo

[14] Referência à canção “Eu me amo” do grupo musical Ultraje a Rigor.

[15] Sugiro a leitura do excelente livro de Viviane Mosé “Nietzsche e a Grande Política da Linguagem”.

[16] Referência aos versos da Divina Comédia de Dante Alighieri: “Qual roda, que ao motor pronta obedece, / Volvia o Amor, que move o Sol e estrelas.”

[17] Paráfrase dos versos de Manoel Bandeira em “Pneumotórax”.

Comentários

  1. Excelente, Humberto! Acrescento que o amor tem vários sentidos. Pode estar circunscrito à Philia, a Eros e a Ágape. O Amor Fatti de Nietzsche parece se aproximar de Ágape na medida da aceitação da condição humana própria e alheia, assim, acabam-se as expectativas.

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  2. Vou me valer de um pensamento conhecido por ti:
    "No seu ponto de partida, o homem só tem instintos; mais avançado e corrompido, só tem sensações; mais instruído e purificado, tem sentimentos; e o amor é o requinte do sentimento. Não o amor no sentido vulgar do termo, mas esse sol interior, que reúne e condensa em seu foco ardente todas as aspirações e todas as revelações sobre-humanas." - Lázaro.

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