Há muitos anos encontrei um primo bem mais velho que me contou uma história de família marcante para mim.
Contou-me que, quando minha avó
paterna decidiu dividir os seus bens em vida, o fez excluindo o meu pai e um
outro tio. Pelas histórias que ouvi da conduta de meu pai, sabia que havia uma
certa lógica por parte de minha avó. Meu pai era da pá virada.
À época da decisão da matriarca,
eu nem nascido havia, portanto não me atingiu tanto quanto aos meus três irmãos
mais velhos; crianças ainda, não puderam ter o apoio dado aos outros netos. Meu
núcleo familiar, em suas origens, sofreu muitas dificuldades as quais não seria
o caso discuti-las aqui.
Meu primo, ao contar esse
episódio, soltou uma gargalhada citando Pascal em francês: Le cœur a ses raisons que la
raison ne connaît point - traduzido seria mais ou menos: o coração têm razões que a própria razão desconhece sugerindo que minha avó havia sido
sequestrada pelos sentimentos antagônicos que nutria pelo meu pai.
Para ele aquilo não passava de um
episódio cômico; para mim, trágico.
Soube, depois desse encontro com
o primo bem-humorado, que muitos anos antes, ainda jovem, esse primo fora
diagnosticado com hanseníase. Sabe-se que essa moléstia carregava um estigma no
qual o seu portador era compulsoriamente isolado nos chamados “leprosários”. Desde
a antiguidade, a vida de uma pessoa diagnosticada com essa doença virava do
avesso. O protocolo era o isolamento acompanhado de todo tipo de discriminação.[1]
Os pais desse primo – o mesmo que
citara Pascal, se desesperaram e pediram ajuda à minha mãe, para que o
escondessem em sua casa. Saliente-se que, à época, minha mãe tinha três
crianças em casa. Entretanto, tomada pela compaixão não deixou de acolher
aquele rapaz, apesar do risco que corria de acordo com a mentalidade e as
condições daquele tempo.
Curiosa essa história, porque se
minha mãe – uma pessoa simples e sem a moldura das letras -, tivesse colocado a
razão acima do coração, jamais teria tomado aquela atitude de alto risco pondo,
no convívio íntimo, alguém com aquela doença a qual os médicos dispunham de
mecanismos legais para buscar esses pacientes em suas casas e prendê-los em
sanatórios.
Por sorte, aquele rapaz – o mesmo
primo que citara Pascal em um gesto de retórica humorada – encontrou alguém (minha
mãe) que, movida pelo coração, aplicara a frase do pensador francês [2].
O coração tem razões que a própria razão desconhece.
[1] https://saopaulosao.com.br/nossas-pessoas/1991-o-isolamento-de-leprosos,-um-cap%C3%ADtulo-da-hist%C3%B3ria-de-s%C3%A3o-paulo-que-durou-40-anos.html
[2] Blaise Pascal (1623-1662) foi um matemático, escritor, físico, inventor, filósofo e teólogo católico francês
Humberto, muito bom partilhar essa essa história. Nos mostra que devemos escutar e seguir nosso coração e nossas intuições, de vez em quando.
ResponderExcluirE os caminhos do coração pidem ser tantos..
ResponderExcluirE o que é prá uns não é para outros...e tudo muda de hora para outra...e cada um com sua própria razão a justificar os atos do coração...quem sou eu para julgar?
Caminhos de vidas.
Humberto querido ❤️. Sempre bom ler seus textos, sempre nos trazem lições para repensar nossa atitudes. Forte abraço meu amigo querido.
ResponderExcluirNo caso da primeira mãe (que resolveu excluir dois familiares) ela "tinha razões que a própria razão conhecia". Já a segunda mãe, não. Se conhecia a dimensão do problema, o seu altruísmo se sobrepôs risco.
ResponderExcluirBens materiais, bens imateriais... escolhas.
ResponderExcluirCada cabeça uma sentença. Sem contar as questões de 'outras existências'.
Sabe-se lá, no íntimo de cada ser, o que lhe vai no âmago?