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MUNDO PERFEITO. DEUS?

*O MUNDO PERFEITO? DEUS? *

Por Humberto Spina e Samuel Mendonça.

13/09/2021

Neste breve texto, escrito a quatro mãos, estabelecem-se duas hipóteses, quais sejam: (i) o mundo é perfeito e criado por Deus e (ii) pouco se sabe sobre o mundo e sobre Deus. As hipóteses evidenciam o caráter aberto do escrito, que suscita o debate, expediente necessário sobre assuntos diversos incluindo os relativos ao divino. Muitos acreditam que o mundo é perfeito e somos nós – seres humanos, que bagunçamos essa obra divina. Há quem diga que os “estragadores” da Terra não são todos, mas uma fatia específica do bolo humano mais conhecido como “maus”. Há quem acredita que o mundo e Deus estão em dimensão outra que a linguagem humana não consegue alcançar. Para este grupo, pouco se sabe sobre o mundo e sobre Deus.

A primeira ideia não é nova, mas ancestral. É só olhar para os sacrifícios oferecidos às divindades, na antiguidade, em que se ofereciam até seres humanos como oferta para apaziguar a ira dos deuses por alguma m* feita. Hoje, esses sacrifícios se psicologizaram; no meio espírita, por exemplo, acredita-se que essa forma de aplacar a ira divina (leia-se “justiça divina”) são as reencarnações punitivas, mecanismo algo estranho que Deus utiliza para o expurgo da maldade enraizada na alma humana. Ideia questionável, porque exclui, logo de cara, o sofrimento dos sencientes – que a rigor não possuem carma negativo (precisa desenhar?).

A segunda ideia reside na observação de que o homem se desenvolveu significativamente, sobretudo nos últimos séculos, no entanto e paradoxalmente, sua elevação parece não ter acompanhado o respectivo desenvolvimento. Trocando em miúdos, a evolução humana parece não passar de uma ilusão. Friedrich Nietzsche (1844-1900) em O Anticristo afirma que “O ‘progresso’ é apenas uma ideia moderna, ou seja, uma ideia errada” (Nietzsche, 2007, p. 11). Será que há mesmo progresso na humanidade na busca da perfeição?

Há uma ideia do relógio e do relojoeiro que vale a pena considerar. Que ideia é essa? É uma metáfora na qual nutre-se grande simpatia de que Deus criou o Universo como se fosse um relógio. Depois, deu corda e o dito “relógio” começou a funcionar e a marcar o tempo após o chamado “big bang” – aqui representado pela maior pressão imposta à corda do relógio.

Reconhece-se que a metáfora não é muito boa, porque parece que Deus deixou tudo pronto e acabado, desde o começo, já que o relógio é um mecanismo que exige grande elaboração. O uso da metáfora serve para não complicar muito em dizer que, na verdade, as primeiras “engrenagens” desse relógio seriam os quarks primordiais do Universo.

Por que, então, apresentam-se ressalvas ao artifício argumentativo do relógio? Porque desde os filósofos gregos acredita-se que o Universo tem uma ordenação perfeita. Em Pitágoras, o número é a condição do pensamento e a matemática a linguagem que mais se aproxima da perfeição. É comum ouvirmos que a Natureza é perfeita, mas de acordo com o astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser, a Natureza, em alguns aspectos fundamentais, é assimétrica.

Para este importante físico brasileiro, e dentro de seu campo de observação, as coisas não funcionam de forma bonitinha como queremos ou que idealizamos.

É curioso notar a necessidade humana de controle do mundo, como se isto fosse possível. Louco para colocar a vida em uma planilha do Excel, o ser humano deseja ardentemente ter um esquadro como modelo do mundo e da vida para poder se sentir mais seguro, menos angustiado, mais protegido diante da enorme falta que sente desde sempre e diante do abismo cósmico que o cerca. O paradoxo está na incapacidade de se construir caminho seguro diante da natureza e de Deus. A condição humana e sua respectiva limitação ensinam que é preciso superar o medo de sentir dor, fazendo referência a Dostoievsky[1] (Os Demônios), na medida em que o desejo por controle e por segurança no mundo revela justamente a insegurança e o descontrole do humano.

Essa angústia vem da mais remota ancestralidade, consubstanciada no mito da expulsão do casal primordial humano do resort em que viviam construído por Deus, e que viveriam eternamente sem o cheiro da morte rondando suas vidas o tempo todo.

Daí a ideia de relógio já concebida pelos primeiros filósofos gregos – que o chamavam de Cosmos, onde cada um de nós teria um papel a cumprir e que a felicidade seria descobrir e operacionalizar esse papel nessa grande engrenagem.

Em seu livro “Criação imperfeita”[2], Gleiser tenta mostrar que as coisas não são bem assim como querem os apaixonados por planilhas do Excel somados àqueles saudosistas do resort e sua vida no “bem-bom”. Não é fácil viver tendo consciência de que, depois de muito tempo observando o abismo, de repente, o abismo começa a nos observar, também, parafraseando Nietzsche[3].

Na visão do primeiro autor – de formação espírita, Deus existe, criou tudo aquilo que se costuma chamar de Natureza (Physis), mas está-se bem longe de descobrir qual foi Sua divina intenção. O segundo autor, por outro lado, também de formação espírita em sua infância e juventude, não tem elementos para afirmar a existência ou a inexistência de Deus. No máximo se pode falar da ideia de Deus nas considerações de David Hume em seu livro Investigação acerca do Entendimento Humano, que seria tema para outro escrito. Portanto, não parece possível compreender a perfeição do mundo e muito menos a natureza divina. O que se pode afirmar é sobre a pequenez e insignificância humanas diante da natureza e de Deus.



[1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2004.

[3]NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo e Ditirambos de Dionísio. Trad. Paulo César de Sousa. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

  

Comentários

  1. Mundo Mutante é a realidade incontestável.

    Deus é uma ideia que existe, para afirmar ou negar.

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