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PERDÃO - Um grande desafio

Diz uma lenda árabe que dois amigos viajavam pelo deserto, quando em determinado ponto da viagem, bastante cansados, um agrediu o outro.
O ofendido, sem nada dizer, pegou o seu cajado e escreveu na areia: “hoje o meu melhor amigo me derrubou no chão”.

Passado algum tempo, seguiram viagem pelo deserto, até chegarem a um oásis.
Lá, se banharam à vontade, até que o amigo que havia sido agredido, começou a se afogar.

O outro nadou até ele e o trouxe até a margem, são e salvo.
Foi quando o amigo resgatado pegou seu sabre e escreveu em uma pedra, cercada de vegetação:

“Hoje o meu melhor amigo salvou a minha vida”.

O primeiro perguntou:

“Por que quando você foi agredido, você escreveu seu sentimento na areia, e quando foi salvo escreveu na pedra”?

O outro respondeu, sorrindo:

“Quando um grande amigo nos ofende, devemos registrar esse dano na areia, para que o vento do esquecimento e do perdão se encarreguem de apagá-lo. Mas quando um amigo nos faz algo grandioso, devemos registrar esse momento na pedra da memória e do coração, onde vento nenhum do mundo pode apagar!”

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O grande desafio

Embora a lenda seja portadora de grande beleza poética, temos de pensá-la em termos mais práticos.

Não conseguimos esquecer as ofensas recebidas. Já que não conseguimos esquecer, é possível nos livrarmos desse afeto triste? Neste caso, abre-se um leque de possibilidades:

Primeiro: reconhecer que carregamos essa mágoa e que ela funciona como bile negra[1] em nossas veias e que potencial para nos tornar melancólicos.

Segundo: podemos utilizar alguns artifícios para aliviar a tensão interna causada pelo espinho da ofensa dando nomes aos personagens do drama e verbalizando-os: “perdoador”; “perdoado”. Entretanto, o ato de perdoar publicamente pode trazer (e traz) um inconfessável desejo de grandeza por parte daquele que perdoa. O ganho de capital simbólico[2] por parte do perdoador compensa, de certa maneira, aquela tensão interna. Esse estado, contudo, não é duradouro, muito menos definitivo; é instável porque depende de inúmeras variáveis. Em outras palavras, apesar do ganho externo, visível, esse ganho não se configura em ganho efetivo porque o líquido viscoso e amargo do ressentimento continua sendo secretado à revelia de seu portador.

Nota: uma das variáveis dessa equação seria a mudança de comportamento do agressor em relação ao agredido, o que indica que o perdoador vai depender de um outro – no caso o agressor, para que se inicie uma disposição de perdoar. Essa é uma garantia que não se tem, porque não se pode medir o quanto o ofensor se disporá em reparar o “erro” e qual o tamanho da exigência por parte do ofendido. Normalmente, esses movimentos não são simétricos.

Terceiro: o senso comum considera que perdoar é esquecer a falta cometida pelo agressor. Essa crença é potencializadora do ressentimento, porque simplesmente não se consegue esquecer. Deslembrar, talvez. Esquecer, não. O esforço feito pela “vítima” da ofensa em esquecer faz com que ela lembre – (re)sinta -, sinta novamente em cores vivas - não raro essas cores são saturadas pela lembrança do momento da agressão recebida.

Nota: é importante salientar a passagem em que Jesus, já na cruz, pede a Deus que perdoe aos seus agressores[3]. Só que muita gente não percebe a condição em que Jesus situa aquela gente que o condenou e executou: o de não saberem o que estavam fazendo. O verbo “saber” tem um peso enorme na frase. Por quê? Porque “saber” é diferente de conhecer. Saber é um tipo de conhecimento sofisticado, elaborado, pensado, vivido. O saber é o conhecimento com sabor. Os que condenaram Jesus conheciam a lei e a cumpriam de acordo com os cânones judaicos, mas não “sabiam”, não saboreavam a lei, porque era uma lei sem gosto, sem tempero, sem espírito, formal.

E aqui cabe uma pergunta: Deus os perdoou, apesar da disposição de Jesus em perdoar os seus ofensores? Tenho dúvidas (entendendo que o perdão pede reparo pelas linhas da lei divina).

Outra sutileza desse passo do evangelho é a de que, ao se dispor a perdoar os seus agressores, Jesus livrava-se, automaticamente, da bile negra - para ser econômico nos argumentos.

Quarto: outro artifício vem do Budismo: devemos nos colocar no mesmo nível do outro, considerando que somos todos humanos e, por isso mesmo, passíveis de erros. Por essa via, por esse olhar (misericordioso?) se realizará o trabalho de apaziguar o ânimo do ofendido. Essa visão, a meu ver, é muito próxima do que escreveu Nelson Rodrigues: “perdoe-me por teres me traído”, ou seja, o traído sempre é aquele que, de certa maneira, estimulou o traidor a trair.

É interessante essa abordagem do budismo, porque revela algo que está por trás do ato de perdoar - normalmente, o perdoador se põe, mesmo que inconscientemente, em patamar mais alto do que o perdoado, o que indica um ar de superioridade daquele em relação a este. Esse "ar superior" é o adubo da vaidade.

Ubiratan Rosa vai por esse caminho ao afirmar: “é fácil perdoar àqueles que desprezamos; difícil é perdoar os que amamos, porque estes têm grande importância para nós.”

A dificuldade com esse artifício tem dois pontos a serem considerados: 1) o tamanho e a profundidade do estrago. Como diz a teologia católica, há pecados veniais e outros, capitais. Uns mais difíceis de engolir que outros. É bom notar o verbo “engolir” colocado por mim, num ato falho, ou seja, você ressignifica de modo racional, mas a coisa continua lá - é aquilo que os psicanalistas chamam de recalque. 2) Por mais que queiramos, não somos iguais. Isso não é difícil de entender. Uma coisa é simbolizar uma igualdade, outra bem diferente é ser igual de fato. O efeito prático dessa observação tira qualquer dúvida em relação à eficácia de se resolver o binômio ofensor-ofendido apenas com aquele que se posiciona no mesmo patamar deste. O efeito corrosivo do recalque demora, mas não falha.

Quinto: outra maneira de se livrar do peso da ofensa é a resignação, figura cantada em verso e prosa pela literatura espírita, sobretudo a linha evangélico-cristã adotada, em geral, pelo movimento espírita brasileiro.

Além de ser uma ferramenta pouco produtiva na dinâmica psíquica de quem se sentiu ofendido, porque a resignação não resolve o problema de forma prática e direta. Não há conciliação entre ofensor e ofendido; este último faz um esforço enorme para ressignificar a ofensa, e só.

É bom lembrar como Ubiratan Rosa conceitua a resignação: “a resignação é uma serpente enrodilhada no coração pronta para dar o bote da revolta...”. Existem inúmeros exemplos de pessoas resignadas que narram suas experiências negativas com os agressores. A narrativa já é um sutil sinal de que a bile negra continua circulando em suas veias.

Sexto: há uma maneira de encarar o problema, a meu ver muito sofisticada, que vem de Primo Levi[4] que, ao ser perguntado o que sentia pelos nazistas, respondeu: “eu não os odeio, porém não os perdoo”. O fato de Levi não odiar os seus agressores – e põe agressão nisso! -, faz dele um caso especial, porque é exatamente o ódio a fonte de produção da bile negra citada acima. Não perdoar para Levi representa a necessidade de não esquecer o que os nazistas fizeram, porque como dizia Bertold Brecht: “a cadela do fascismo está sempre no cio”, ou seja, o não esquecimento da ofensa é um sinal de alerta e tem efeito prático e profilático, porque pode evitar o surgimento de movimentos extremistas possuidores, não raro, de grande violência, preconceito e racismo que podem ser combatidos no nascedouro.

Sétimo: volto ao primeiro item: um olhar profundo e sereno (ataráxico[5]) de si mesmo pode trazer respostas muito interessantes como, por exemplo, que temos uma hipersensibilidade ao que os outros fazem e dizem a nosso respeito: dar-se muita importância; achar-se a cereja do bolo; ficar melindrado facilmente - todos sinais de baixíssima capacidade de pensar a vida e o mundo. Nossa interdependência é gigantesca, a hostilidade é grande e os mimados se ofendem e se ressentem o tempo todo com essa realidade do mundo onde vivemos. Essa realidade que não dá a mínima bola para o que pensamos ou sentimos. A força gravitacional é a mesma para todos.

Neste passo, justifico o título desse texto: “o grande desafio” que é estar ciente da ofensa, não esquecê-la, e mesmo assim não odiar o ofensor.

Difícil? Quem disse que seria fácil?



[1] Teoria dos humores: conhecida por teoria humoral hipocrática (Hipócrates tido como o pai da medicina) ou galênica, segue as teorias dominantes na escola de Kos, segundo as quais a vida era mantida pelo equilíbrio entre quatro humores: Sangue, Fleuma, Bíle Amarela e Bíle Negra, procedentes, respectivamente, do coração, cérebro, fígado e baço.

[2] Para Pierre Bourdieu o conceito de capital simbólico é o que confere status, honra e prestígio, tratamento diferenciado, privilégios sociais.

[3] Paiperdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem” (Lucas 23.34).

[4] Primo Levi foi um químico e escritor italiano. Escreveu memórias, contos, poemas e novelas. É mais conhecido por seu trabalho sobre o Holocausto, em particular, por ter sido um prisioneiro em Auschwitz-Birkenau.

[5] Ataraxia: para os pensadores cépticos, epicuristas e estoicos, completa ausência de perturbações ou inquietações da mente, concretizando o ideal tão caro à filosofia helênica da tranquila e serena felicidade obtida através do domínio ou da extinção de paixões, desejos e inclinações sensórias. 

Comentários

  1. Interessante a perspectiva, Humberto. Após anos de psicanálise (na condição de paciente), aprendi que a guerra de prestígio leva à morte, então, mesmo que talvez não seja possível perdoar aquele que nos ofendeu, parece possível assumir a responsabilidade de quem propiciou o tombo alheio, mesmo que indiretamente, de modo a focalizar o que interessa, isto é, não a culpa alheia, mas, aquilo que propiciou a queda do irmão, ou seja, o nosso papel na ofensa. Quero significar que os erros que cometem conosco contemplam a nossa parcela de responsabilidade, seja direta ou indireta. Isto não significa que somos responsáveis por todas as ofensas recebidas, mas, há muitas delas que sim. As que não somos responsáveis, não vislumbro o perdão, mas, a que somos responsáveis, perdoar é preciso. Obrigado!

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  2. Perdoar exige maturidade do ser e indubitavelmente é um processo libertador.

    Saber disso difere do fazer isso.

    Valem as tentativas até se conseguir êxito.

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