A leitura bem-feita de uma obra densa é um exercício
psicanalítico. Ler é uma viagem ao redor de si mesmo, tangenciando e
questionando convicções, com perspectiva e afastamento. Conheço-me conhecendo o
príncipe[1].
Meus espaços são violentados e forçados para novas fronteiras. A
maturidade decorre do diálogo entre a vida e as leituras ao longo da vida.
Karnal,
Leandro. O que aprendi com Hamlet (p. 9). Leya. Edição do Kindle.
Ora, estando Karnal com a razão,
temos de admitir que textos difíceis serão sempre bem-vindos, porque podem
provocar em nós uma superação, um engendramento de pensamentos que desembocam
em mudanças na estrutura da visão que temos de tudo.
Um texto óbvio pode ser bonito,
elegante, de boa métrica e trazer grandes contribuições para todos nós, mas
dificilmente forçará mudanças significativas em nossa maneira
de pensar.
As mudanças que um texto óbvio provocam tendem a ser superficiais, porque já conhecidas por nós e não farão muita
diferença; quando muito provocarão algum sentimento agradável de encontro, de déjà
vu[2],
de lembrança, mas nunca uma epifania.[3]
E é exatamente o que Karnal quer
dizer quando diz: “um exercício psicanalítico” – algo que nos toca fundo e nos
transforma, mas ao mesmo tempo pode ser bastante desagradável.
Outro trecho que destaco é aquele
onde Karnal nos põe diante de um gênio da literatura pela leitura de sua obra:
como uma rêmora grudada a um veloz e imenso tubarão cumprindo
funções definidoras de ambos.
Karnal, Leandro. O que aprendi com
Hamlet (p. 10). Leya. Edição do Kindle.
Esse trecho do texto de Karnal
implica em nossa condição de aprendizes na qual há uma possibilidade de
vivermos bem sob a tutela intelectual de gente que pensa mais fundo e mais
amplo que nós, através da leitura interessada e despida de preconceitos.
Por fim, Karnal chama a atenção
do leitor para o perigo da rendição total a uma ideia, um conceito, um sistema que seduz, seja pela ignorância, por certa simpatia, por uma tendência qualquer:
Tento não me diluir no momento e criar um mínimo de
afastamento para não virar um Cláudio ou um Polônio. Por incrível que
pareça, por vezes tenho de ser ainda mais consciente para não virar um
Hamlet...
Karnal,
Leandro. O que aprendi com Hamlet (p. 10). Leya. Edição do Kindle.
E arremata:
Penso nas pessoas que, como você e eu, como cada um de
nós, atravessam a existência biográfica com a bengala de fontes de sabedoria
como a Bíblia, Shakespeare ou citações esparsas.
Karnal,
Leandro. O que aprendi com Hamlet (p. 11). Leya. Edição do Kindle.
Karnal encerra a sua introdução
passando um recado muito importante para todos nós:
Só quem conseguiu dizer tudo pode encerrar com a ideia de
silêncio. O resto é silêncio quando já conseguimos dizer a nós e ao mundo o que
deve ser dito. Também aprendemos a calar com Hamlet.
Karnal,
Leandro. O que aprendi com Hamlet (p. 12). Leya. Edição do Kindle.
Difícil? E quem disse que seria
fácil?
Nota: Os destaques são meus.
[1]
Karnal faz referência ao personagem da peça
shakespeariana “Hamlet”.
[2] Déjà vu é um galicismo que descreve a reação
psicológica da transmissão de ideias de que já se esteve naquele lugar antes,
já se viu aquelas pessoas, ou outro elemento externo. O termo é uma expressão
da língua francesa que significa: "Já visto”.
[3] Epifania é um sentimento que expressa uma
súbita sensação de entendimento ou compreensão da essência de algo.
Também pode ser um termo usado para a realização de um sonho com difícil
realização.
Li o texto.
ResponderExcluirSão chamamentos instigantes a nos concentrarmos em boas leituras pois, dali sairão provocações que nos farão revirar os baú da nossa própria personalidade.
Sim, penso igual. De fato, este é o grande desafio de fazer leituras mais densas, digamos assim.
Contudo... o senão que faço é o de que, não podemos olvidar um mero deleite, intercalando-o entre textos densos e os superficiais, por um simples motivo, e aqui permita-me o uso da analogia:
Não devemos esquecer que o nosso reflexo no espelho d'água somente ocorre na superfície e não no fundo.
Partindo deste princípio eu entendo que, mesmo que façamos leituras amenas e que "talvez" nos pareçam de menor potencial cognitivo, sempre haverá algo na superfície e no espelho d'água que nos suscitará a olharmos para nós mesmos.
Quanto ao mais, sem retoques.
Só me resta o sentimento de admiração pelo que li. Mas não a compreensão literal dos aspectos mais intrincados do texto escapam aos meus conhecimentos literários.
ResponderExcluirMeu amigo Humberto, muito se discute na filosofia sobre a densidade (dificuldade) de textos e de sua necessidade para o exercício filosófico. De um lado, textos didáticos cumprem um papel importante para quem inicia na seara da filosofia. Por outro, não se pode ignorar o enfrentamento necessário de textos densos. Cito apenas alguns autores que demandam leituras e releituras para o início da compreensão do que escreveram como Hegel, Kant ou Deleuze. Muito antes de estudar filosofia, lembro-me da tentativa de leitura do livro A Evolução Anímica de Gabriel Delanne e da dificuldade de compreensão dele. Depois de ter estudados vários filósofos ao longo dos estudos acadêmicos, retomei o texto de Delanne e notei a didática e clareza dele. Então, a dimensão de exercício psicanalítico está posta dado que muitos fugirão de textos filosóficos como o farão em relação a um divã. Mais do que isto, estudar filosofia ou buscar superar as fragilidades que temos é para poucos, infelizmente. Grande abraço!
ResponderExcluirParafraseando o escrito argentino Alberto Manguel: "Ler é um ato de poder".
ResponderExcluirInterpretar e assimilar um pensamento mais elaborado requer hábito, insistência e persistência.
*escritor
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