Notas à margem de uma história
budista
O mestre Shaku Soen gostava de passear ao entardecer pela
aldeia próxima ao mosteiro
Um dia, ele ouviu fortes lamentos vindos de uma casa e
resolveu bisbilhotar. Ao entrar na casa, compreendeu que o dono havia morrido,
e que a família e os vizinhos estavam chorando
Ele procurou um lugar para se sentar e chorou com eles.
Um velho o reconheceu e ficou surpreso de ver o famoso mestre
acompanhá-los no pranto.
Disse o velho ao mestre: eu acreditava que tu estivesses além
dessas coisas.
Mas é exatamente isso que me coloca mais além, respondeu o
mestre num soluço.
Do livro “Pocket Zen”. Bruno Pacheco. Editora Nova Era. 2004
1) Uma das coisas mais
intrigantes para os pessimistas é que há alguns humanos - muito poucos – que conseguem
agir com grande desprendimento (frise-se desinteressado) e de solidariedade
muito além das expectativas. Essas ações causam espanto nessa corrente de
pensadores, porque são pontos fora da curva e porque contrariam a lógica na
qual o ser humano é intrinsecamente egoísta.
2) Todos nós somos impelidos a
buscar a felicidade - não essa busca idiota apregoada em livros de autoajuda e
de workshops onde ensinam “as 6 leis”, “as 10 regras”, “os 3 caminhos” disso ou
daquilo, mas uma busca inconsciente por um estado anterior onde as coisas pareciam
funcionar a nosso favor (Freud).
3) O mestre procurou saber o que
estava acontecendo dentro daquela casa e sua curiosidade o levou a deparar-se com uma cena de profunda tristeza e, como era de se esperar de alguém
com grande saber, somou-se ao grupo da família para prantear a perda de um ente
querido.
4) O espanto do velho ao ver o mestre Shaku chorando pela morte de alguém o qual nem conhecia, mostra uma visão distorcida que se faz de homens sábios, que no senso comum devem ser indiferentes à dor alheia, por saber de nossa condição transitória.
Sua empatia com a dor alheia mostra exatamente que, por ser sábio, é que está "além dessas coisas"
Vale notar que é um velho que se espanta com a atitude do mestre, indicando que nem sempre a idade cronológica é sinônimo de sabedora.
5) A resposta dada pelo mestre é profunda e, apesar de sua aguda visão de mundo, ele conseguia, naturalmente, ser solidário e empático com o sofrimento alheio mesmo por uma coisa tão evidente, apesar de chocante, quanto a morte.
6) A impressão que dá, instantaneamente, é a de que o mestre gabava-se de sua condição superior - nossa costumeira racionalização leva a esse juízo. No meu entendimento, porém, o mestre - concordava com o velho na sua visão de ser “especial” exatamente porque sofria muito dando a entender que quanto mais profunda é a visão de mundo, quanto mais capacidade de enxergar a condição de fragilidade e de insuficiência a que a criatura humana está submetida neste mundo, mais e mais se sofre pela dor do outro, sem o temor de também sofrer, contrariando a busca inconsciente daquele lugar chamado "paraíso perdido" do mito fundador.
7) A historinha nos remete à
experiência que estamos vivendo atualmente: o perigo da banalização da morte e
a indiferença que aumenta em nossos corações ávidos de felicidade e apressados
em fugir do sofrimento próprio de nossa condição como bem diz o Budismo.[i]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
Concordo.
ResponderExcluirEnquanto o sentimento dos que choram pelo morto justo e natural, a nobreza de sentimento do mestre vai além: ele chora muito mais (ou somente) pela dor que saqueles que ali estão sofrendo.
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ResponderExcluirLembrei da seguinte assertiva (atribuída a Jung, a confirmar):
"(...) ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana."