O texto abaixo é de minha autoria em parceria com o Prof. Dr. Samuel Mendonça, a quem muito agradeço.
CRISES
Uma das pontas do novelo surgiu depois de
alguns dias de desencontros. Estar deprimido reivindica coragem, embora para
alguns possa significar fraqueza. Se a depressão pode fragilizar o humano,
paradoxalmente, ela também pode ser ponto de inflexão para a travessia desejada
que traduz a superação do sofrimento vivido. Coragem de quem ainda tem alguma
fagulha de vida no coração e coragem para olhar para o espelho e perceber a
medida exata de seu tamanho e importância diante do mundo. O reconhecimento da
pequenez humana, da arrogância que nos atormenta e da mediocridade de nossa
existência motiva a busca que não cessa de mirar para a idealização daquilo que
não é. É o que disse o salmista:
“Faze-me conhecer, Senhor, o meu fim, e a medida dos meus
dias qual é, para que eu sinta quanto
sou frágil”. (Salmos 39:4)
A crise[1] vem
desse processo de reconhecimento que é, dependendo da maneira como se lida com
ela, terapêutico; uma espécie de expurgo, ponto de mutação, de catarse
comburente que queima em círculos não deixando brecha para fugas inoportunas;
comparado à sensação de estar caminhando sobre um fio de navalha.
Justamente nesse instante de grande
angústia há uma chama que se acende na alma e que reivindica uma atitude diante
da confusão instalada: ou você cai com o rosto no pó e estrebucha e se afunda
na escuridão do remorso e do ódio, ou sofre as queimaduras desse batismo de
fogo e segue a vida agora marcada pelas cicatrizes dessa tremenda experiência.
Os diferentes ciclos da vida humana
inserem momentos de ruptura, de fechamento, de recomeço, de continuidade.
Ciclos que não cessam de recomeçar para uma nova frustração. Por outro lado,
junto de cada frustração, adiciona-se a possibilidade do autoconhecimento,
nível que exige quietude e superação da guerra de prestígio, no sentido
psicanalítico mesmo. Em uma palavra, para que se alcance a plenitude do que se
é, é preciso morrer. Pierre Hadot[2],
em seu livro Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga, apresenta, dentre os
exercícios espirituais, justamente o aprendizado da morte do individualismo
para a afirmação de uma visão mais ampla, que considere o outro, que reconheça
o diferente, o divergente, o que faz tensionar, aborrecer, frustrar, ensinar.
Quem estaria preparado para o exercício espiritual da morte?
É curioso reconhecer que Fiódor
Dostoievski[3],
em Os Demônios, afirma que “Deus é a dor do medo da morte. Quem vencer a dor e
o medo se tornará Deus. Então haverá uma nova vida, então haverá um novo homem,
tudo novo”.
O que sobrou disso? Muita coisa. Uma delas
é o cansaço de se ter razão. Aquele que se dispõe a ter razão o tempo todo não
compreendeu o sentido da quietude e vive de perturbação inventada. É um
inferno.
Para se livrar dessa condição infernal, é
preciso reconhecer a responsabilidade de quem criou os fantasmas que devem ser
extirpados. Sem este exercício de autoconhecimento, de quietude e de superação
da luta de prestígio, não se consegue sair do ethos inventado que aprisiona.
Por este motivo, livrar-se de “ter razão” em todos os casos é parte da dissolução
do aprisionamento construído por cada um de nós. Atitude que poderá gerar mais
leveza, quietude porquanto plenitude.
É importante salientar que “pôr leveza à
vida” não significa menos compromissos, menos trabalho, mais tempo para divertment[4]
como dizia Pascal, ou encontrar a felicidade em pacotes de presentes
embrulhados com papeis cintilantes. Definitivamente não!
Quem quiser viver com leveza terá a
difícil tarefa de se desvencilhar de muita coisa: desde as mais fáceis e
superficiais até as mais enraizadas na alma como os valores carcomidos pelo
tempo e, sobretudo, do ódio. Sabe-se, não é fácil.
Pelo exposto, não se roga o perdão a todos com quem se conviveu, e a quem se prejudicou, porque sabe-se da dificuldade que é perdoar de fato. Qualquer movimento forçado para perdoar será um desastre, dado que a tendência é potencializar o rancor e a mágoa. Por isso, considera-se o perdão legítimo como algo alcançável por poucos.
Evoca-se a figura de Primo Levi[5]
que vira a morte nos campos de concentração nazistas e ao final dizia: “[...]
não os perdoo pelo que fizeram, mas não os odeio”. Levi sabia da carga maléfica
que é odiar.
Então, roga-se para que não se odeie,
porquanto o ódio é um veneno corrosivo e cheira à enxofre. Pesa na alma de quem
o tem. A beleza da vida aparece quando colocamos leveza na bagagem existencial.
E a beleza salvará o mundo.[6]
[1] Crise vem do grego e denota estado de
incertezas e caos. Ver https://etimologia.com.br/crise/
[2] Publicação de É Realizações, 2016.
[3] Utiliza-se a tradução de Paulo Bezerra. Publicação da
Editora 34, 2004.
[4]
Blaise Pascal (1623-1662).
Pascal foi um matemático, escritor, físico, inventor, filósofo e teólogo
católico francês. Para ele, divertimento designava todas as atividades que
nos impedem de pensar em nós mesmos. Uma forma de fuga de si.
[5] Primo Levi foi um químico e escritor
italiano. Escreveu memórias, contos, poemas e novelas. É mais conhecido por seu
trabalho sobre o Holocausto, em particular, por ter sido um prisioneiro em
Auschwitz-Birkenau
[6] Referência ao escritor russo Fiodor
Dostoiewski em seu romance “Irmãos Karamazov”.
Muito bom! 🙏🙌👏
ResponderExcluirO texto continua genial em sua essência, agora com a colaboração do Dr. Samuel Mendonça, mas permanece o sotaque "humbertiano"
ResponderExcluir.
Crise, árdua mudança.
ResponderExcluirCrie, convite alternativo.