A caixa de sapatos: Era o
dia 25 de dezembro. Na noite da véspera, Papai Noel havia visitado as crianças
da vizinhança deixando para cada uma delas um presente. Eram presentes simples.
Uma bola. Uma boneca comprada em loja, de celulóide, material antepassado do
plástico. Uma boneca de pano que alguém fizera em segredo. Um caminhãozinho de
madeira que se comprava na cadeia. Os presos, sem ter o que fazer,
transformavam-se em fabricantes de brinquedos. Sim, parecia que Papai Noel
visitara todas as crianças da redondeza. E todos os meninos e meninas saíam à
rua, exibindo a sua alegria. Menos o Vinícius, menino de 6 anos, meu vizinho.
Papai Noel se esquecera dele. Ele estava muito longe, entregue a amores de
capital. O Vinícius, então, apareceu puxando o presente que ele mesmo fizera:
uma caixa de sapato, amarrada a um barbante.
O Natal me deixa triste.
Porque, por mais que o procure, não o encontro. Natal é uma celebração. As
celebrações acontecem para trazer do esquecimento uma coisa querida que
aconteceu no passado. A celebração deve ser semelhante à coisa celebrada. Não
posso celebrar a vida de Gandhi com um churrasco. Ele era vegetariano, amava os
animais. Uma celebração de Gandhi teria de ser feita com coisas que o
representassem: verduras, água, leite e um falar baixo. Mais a leitura de
alguns dos textos que ele deixou escritos. Assim Gandhi se tornaria um dos
hóspedes da celebração. Agora, um visitante de outro planeta que nada soubesse
das nossas tradições, se ele comparecesse às festas de Natal, sem que nenhuma
explicação lhe fosse dada, ele concluiria que o objeto da celebração deveria
ser um glutão, amante das carnes, das bebidas, do estômago cheio, da conversas
em voz alta, do desperdício. Nossas celebrações de Natal são como as cascas de
cigarra agarradas às árvores. Cascas vazias, das quais a vida se foi. Se
perguntar às crianças o que é que está sendo celebrado, elas não saberão o que
dizer. Dirão que o Natal é dia do Papai Noel, um velho barrigudo de barbas
brancas amante do desperdício, que enche os ricos de presentes e deixa os
pobres sem nada. Foi isso que ele fez com o Vinícius. Pois é certo que as
celebrações do Natal são orgias de ricos, celebrações do desperdício e do lixo.
Celebrações do lixo? Aquelas pilhas de papel de presente colorido em que vieram
embrulhados os presentes, não são elas essenciais às celebrações? Rasgados,
amassados, embolados num canto. Irão para o lixo. Quantas árvores tiveram de
ser cortadas para que aqueles papéis fossem feitos. Para quê? Para nada. A
indiferença com que tratamos o papel de presentes é uma manifestação da
indiferença com que tratamos a nossa Terra.
Estou convidando meus amigos
para uma celebração de Natal. Ela deverá imitar a ceia que José e Maria tiveram
naquela noite: velas acesas, um pedaço de pão velho, vinho, um pedaço de
queijo, algumas frutas secas. À volta de um prato de sopa de fubá – comida de
pobre –, tentaremos reconstruir na imaginação aquela cena mansa da estrebaria,
um nenezinho deitado numa manjedoura, uma estrela estranha nos céus, os campos
iluminados pelos vaga-lumes. E ouviremos as velhas canções de Natal, e leremos
poemas, e rezaremos em silêncio. Rezaremos pela nossa Terra, que está sendo
destruída pelo mesmo espírito que preside nossas orgias natalinas.
RUBEM ALVES
Este texto merece uma profunda reflexão sobre nós mesmos, qual nosso papel neste imenso teatro chamado encarnação. Será que estamos mesmo evoluindo ou repetindo continuamente nossos erros e apegos do passado.
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