Pular para o conteúdo principal

ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 4]


Qualquer conceito pelo qual o pensamento se identifica como Eu, Meu, Nosso, é essencialmente mau, separa, divide as criaturas, torna-as sumamente hostis umas para com as outras.

Por amor da Pátria, da Família, da Crença, aborrecemos e odiamos o outro, o estrangeiro, o vizinho, o que não é confrade, e isto é um contra-senso, uma aberração: não podem coabitar o amor e o ódio num mesmo coração. Se coabitam, cumpre conhecê-los bem, talvez não sejam, seguramente não são, como pensamos, amor e ódio, mas coisas diferentes. Meu amor da Pátria pode ser (e na verdade é) um puro egocentrismo, um apego doentio a mim mesmo; meu ódio ao outro, o grande medo que tenho da fragilidade da noção de Pátria, com que busco me fortalecer.

Ocorre o mesmo quanto às crenças ditas religiosas. Faço proselitismo, quero que todos professem o que professo, aceitem o deus ou o mistério que aceitei, porque, no consenso dos outros, me fortaleço, e na sua dissidência ou negação, me enfraqueço. Mas é precisamente esse desejo de fortaleza que me enfraquece, porque o desejo é vão, a fortaleza, inexistente.

Se vazios os conceitos, donde a mórbida tentativa de os encher continuamente: para nutrir o sempre faminto e raquítico conceito de Pátria entoamos hinos, com lágrimas nos olhos, comprimindo com a "destra" o coração que nos bate no peito aceleradamente: gritamos, choramos, ofendemos, agredimos nos estádios desportivos, onde empatizamos com "nossos" atletas, que adoramos quando conseguem recordes mundiais, e desprezamos cruelmente quando são derrotados (empatizar é estabelecer identificação emocional da pessoa com indivíduos ou coisas percebidas); exaltamo-nos com "nossos" cientistas, "nossos" artistas, escritores, poetas: se reconhecidos internacionalmente, orgulhamo-nos de nós através deles, sentimo-nos, a nós, reconhecidos e aplaudidos. Somos pequenos, medíocres, mas com eles empatizamos somos grandes, extraordinários.

Assim também, na vã tentativa de encher o vácuo dos conceitos religiosos ou pseudo-religiosos, vamos à missa, ao culto, à sessão, à celebração, e igualmente lacrimejantes cantamos, rezamos, oramos, pedimos, agradecemos, às cegas, surdamente, centrados em nós mesmos mas de olhar revirado para o "céu" tristemente figurado no reboco do teto da igreja, do templo, da loja, mas crentes de que falamos com Alguém, e o escutamos, por muito abstrato que seja esse Alguém, e indefinível, e inefável.

O vazio dos conceitos é impreenchível. Eles são, os conceitos, como sacos sem fundo, e daí a necessidade de repetir compulsivamente o ato delirante de os preencher: e reiteradamente, como que por castigo de Sísifo[1], de novo cantamos, e mais hinos entoamos, e outra vez rezamos; mas o culto, a adoração, a reza, a liturgia, o ritual, a reverência, a apresentação de armas, o juramento, a honra familiar, a respeitabilidade moral e cívica, tudo cai no abismo conceitual, é insaciável a voragem do vazio, que inutilmente intentamos preencher na funérea repetição, na ciranda louca, na tautologia fantasmagórica que não conhece fim.

A vida conceitual é a vida que inventamos no anseio de permanência, poder, importância pessoal. É uma vida simbólica, irreal: vivemos pelos signos e símbolos, presas dos significantes, sem nenhum conhecimento dos significados[2], que entanto nos condicionam e dirigem.

Essa vida conceitual nutre-se essencialmente do conflito, da competição, da agressividade, porque conceitos, opiniões, modos-de-ver, de ser ou de sentir são particulares, nunca universais. Não existem conceitos universais, porque a sua natureza é precisamente a particularidade (particularizam-se sempre pela qualificação: é diferente a "pátria brasileira" da "pátria chinesa", a "família Souza" da "família Ramos", a "crença católica" da "crença protestante"; fragmentam-se invariavelmente pela adjetivação, pelo adjunto adnominal: "propriedade municipal, "propriedade do Estado").

Por serem particulares, opõem-se uns aos outros, donde o conflito. Neste conflito sofremos, porque é da natureza do conflito o fazer sofrer aquele que nele vive.

"Como anular o conflito?"

O conflito não é um efeito? Ora, se só se anula o efeito anulando-se-lhe a causa, têm-se de anular os conceitos, que são a causa eficiente do conflito.

"E por que vias se anulam?"

Pelo acurado conhecimento da sua existência, e o fundo percebimento da sua mais íntima essência.


[1] Sísifo: rei lendário de Corinto. Célebre figura da mitologia grega, foi condenado, no Hades ( o inferno dos gregos), a levar uma enorme pedra até o alto de um morro; porém, mal chega ao topo a pedra lhe cai das mãos e rola para o lugar de origem, onde ele de novo a pega e reenceta a subida, eternamente. Daí a expressão "trabalho de Sísifo para significar um esforço vão, que não leva a nada.
[2] Um signo ou símbolo sempre significam alguma coisa, são significantes, têm um significado. Por exemplo:  na bandeira do Brasil diz-se que o verde representa as matas do país. O verde é o significante, as matas, o significado. Vê-se que o significado dá origem ao significante; mas o significado é ainda um significante de um significado anterior, que em geral não conhecemos. No caso da bandeira esse significado desconhecido cifra-se nos motivos pelos quais se escolheu o verde, e, sobretudo, porque temos bandeiras. Não só os signos e símbolos, mas todos os conceitos são significantes e encerram significados. Por isso os temos de conhecer, na acurada observação do autoconhecimento.


Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús...

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . ...

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh...

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua pers...

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e...

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s...