Qualquer conceito pelo qual o pensamento se
identifica como Eu, Meu, Nosso, é essencialmente mau, separa, divide as
criaturas, torna-as sumamente hostis umas para com as outras.
Por amor da Pátria, da Família, da Crença,
aborrecemos e odiamos o outro, o estrangeiro, o vizinho, o que não é confrade,
e isto é um contra-senso, uma aberração: não podem coabitar o amor e o ódio num
mesmo coração. Se coabitam, cumpre conhecê-los bem, talvez não sejam,
seguramente não são, como pensamos, amor e ódio, mas coisas diferentes. Meu
amor da Pátria pode ser (e na verdade é) um puro egocentrismo, um apego doentio
a mim mesmo; meu ódio ao outro, o grande medo que tenho da fragilidade da noção
de Pátria, com que busco me fortalecer.
Ocorre o mesmo quanto às crenças ditas religiosas.
Faço proselitismo, quero que todos professem o que professo, aceitem o deus ou
o mistério que aceitei, porque, no consenso dos outros, me fortaleço, e na sua
dissidência ou negação, me enfraqueço. Mas é precisamente esse desejo de
fortaleza que me enfraquece, porque o desejo é vão, a fortaleza, inexistente.
Se vazios os conceitos, donde a mórbida tentativa de
os encher continuamente: para nutrir o sempre faminto e raquítico conceito de
Pátria entoamos hinos, com lágrimas nos olhos, comprimindo com a
"destra" o coração que nos bate no peito aceleradamente: gritamos,
choramos, ofendemos, agredimos nos estádios desportivos, onde empatizamos com
"nossos" atletas, que adoramos quando conseguem recordes mundiais, e
desprezamos cruelmente quando são derrotados (empatizar é estabelecer
identificação emocional da pessoa com indivíduos ou coisas percebidas);
exaltamo-nos com "nossos" cientistas, "nossos" artistas,
escritores, poetas: se reconhecidos internacionalmente, orgulhamo-nos de nós
através deles, sentimo-nos, a nós, reconhecidos e aplaudidos. Somos pequenos,
medíocres, mas com eles empatizamos somos grandes, extraordinários.
Assim também, na vã tentativa de encher o vácuo dos
conceitos religiosos ou pseudo-religiosos, vamos à missa, ao culto, à sessão, à celebração, e
igualmente lacrimejantes cantamos, rezamos, oramos, pedimos, agradecemos, às
cegas, surdamente, centrados em nós mesmos mas de olhar revirado para o
"céu" tristemente figurado no reboco do teto da igreja, do templo, da
loja, mas crentes de que falamos com Alguém, e o escutamos, por muito abstrato
que seja esse Alguém, e indefinível, e inefável.
O vazio dos conceitos é impreenchível. Eles são, os
conceitos, como sacos sem fundo, e daí a necessidade de repetir compulsivamente
o ato delirante de os preencher: e reiteradamente, como que por castigo de
Sísifo[1],
de novo cantamos, e mais hinos entoamos, e outra vez rezamos; mas o culto, a
adoração, a reza, a liturgia, o ritual, a reverência, a apresentação de armas,
o juramento, a honra familiar, a respeitabilidade moral e cívica, tudo cai no
abismo conceitual, é insaciável a voragem do vazio, que inutilmente intentamos
preencher na funérea repetição, na ciranda louca, na tautologia fantasmagórica
que não conhece fim.
A vida conceitual é a vida que inventamos no anseio
de permanência, poder, importância pessoal. É uma vida simbólica, irreal:
vivemos pelos signos e símbolos, presas dos significantes, sem nenhum
conhecimento dos significados[2],
que entanto nos condicionam e dirigem.
Essa vida conceitual nutre-se essencialmente do
conflito, da competição, da agressividade, porque conceitos, opiniões,
modos-de-ver, de ser ou de sentir são particulares, nunca universais. Não
existem conceitos universais, porque a sua natureza é precisamente a
particularidade (particularizam-se sempre pela qualificação: é diferente a
"pátria brasileira" da "pátria chinesa", a "família
Souza" da "família Ramos", a "crença católica" da
"crença protestante"; fragmentam-se invariavelmente pela adjetivação,
pelo adjunto adnominal: "propriedade municipal, "propriedade do
Estado").
Por serem particulares, opõem-se uns aos outros,
donde o conflito. Neste conflito sofremos, porque é da natureza do conflito o
fazer sofrer aquele que nele vive.
"Como anular o conflito?"
O conflito não é um efeito? Ora, se só se anula o
efeito anulando-se-lhe a causa, têm-se de anular os conceitos, que são a causa
eficiente do conflito.
"E por que vias se anulam?"
Pelo acurado conhecimento da sua existência, e o
fundo percebimento da sua mais íntima essência.
[1] Sísifo: rei lendário de
Corinto. Célebre figura da mitologia grega, foi condenado, no Hades ( o inferno
dos gregos), a levar uma enorme pedra até o alto de um morro; porém, mal chega
ao topo a pedra lhe cai das mãos e rola para o lugar de origem, onde ele de
novo a pega e reenceta a subida, eternamente. Daí a expressão "trabalho de
Sísifo para significar um esforço vão, que não leva a nada.
[2] Um signo ou símbolo sempre
significam alguma coisa, são significantes, têm um significado. Por
exemplo: na bandeira do Brasil diz-se
que o verde representa as matas do país. O verde é o significante, as matas, o
significado. Vê-se que o significado dá origem ao significante; mas o
significado é ainda um significante de um significado anterior, que em geral
não conhecemos. No caso da bandeira esse significado desconhecido cifra-se nos
motivos pelos quais se escolheu o verde, e, sobretudo, porque temos bandeiras.
Não só os signos e símbolos, mas todos os conceitos são significantes e
encerram significados. Por isso os temos de conhecer, na acurada observação do
autoconhecimento.
Bela reflexão. Profundo.
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