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ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 1]

Por ocasião da passagem do ano, quero oferecer este texto de Ubiratan Rosa para nossa reflexão.

Como se trata de um texto mais longo decidi publicá-lo em partes. Espero, sinceramente, que este ensaio do Ubiratan sirva de abertura do pensamento para novos horizontes.

O texto faz parte de uma coletânea de ensaios chamada "Mais Treva do que Luz e outros ensaios", Lince Reprografia e Editora Ltda, 1989.

Boa leitura.


ANO NOVO, VIDA VELHA
                                                                      
Os dados do condicionamento psicológico, centrados nos conceitos, não desaparecem; mas desativam-se.

            Por ocasião das festas de fim de ano são comuns os votos de novidade para o ano que se inicia: "Ano Novo, vida nova!" Mas a vida continua sempre velha, porque não nos renovamos. Teríamos de ter, não só um ano novo, porém um mês novo, uma nova semana, feita de novos dias, porque integrada por horas novas, novos minutos e segundos novos: uma renovação momento a momento. Renovação é o ato de renovar, que aqui entendemos, não na acepção transitiva-direta de "novar ou inovar outra vez", porque, se outra vez novamos, repetimos o conhecido, e sempre temos o velho com aparência de novo. Novar ou inovar, sim, mas intransitivamente.

A novação intransitiva - Quando dizemos "intransitivamente" queremos significar: "sem objeto", sem motivos. Porque, se tivermos um motivo, uma finalidade, este motivo, esta finalidade serão o conhecido (eu só posso objetivar o que conheço), portanto, o velho, nunca o novo. Se eu sei, sei porque o conheço. Se o conheço, ele não é novo.

"Mas, estados psicológicos que ainda não experimentei podem ser o novo para mim. Deles eu sei por ouvir dizer. Por exemplo, sou pobre, logo, não sei o que é ser rico. Se desejo esse estado de rico, que desconheço, não posso dizer que estou desejando ou objetivando o conhecido, o velho. Ser rico seria, para mim, uma novidade."

Seria mesmo?

Você é pobre. Seus pais, provavelmente, são pobres, ou foram pobres, e pobres também os seus avós. Antes de você , eles também desejaram ser ricos, e precisamente esse desejo eles transmitiram a você no processo usual do condicionamento psicológico. Você cresceu na firme crença de que é melhor ser rico que ser pobre, e nessa crença você projeta, agora, o desejo de ser rico. Este desejo é o velho, com aparência de novo.

O "estado de rico", que você nunca experimentou, que você nunca viveu, você não sabe o que é, logo, não pode desejá-lo objetivamente. Na verdade, o que você realmente deseja é "não ser pobre", porque foi condicionado no medo à pobreza. Sempre lhe disseram que você teria de ser Alguém. Ser Alguém é ser rico, ou famoso, ou intelectualmente brilhante, é ser de alguma forma notório. Se você não estabelece ponte alguma entre você e um dado objetivo, você permanece intransitivamente em você mesmo.
No seu exemplo: você é pobre. Como sabe que é pobre?

Porque se compara com quem não é.

Se você não tiver um ponto de referência, o rico, você é pobre?

Não, você é aquilo que é, e daqui você empreende o conhecimento de você mesmo.
Na observação daquilo que você chama "pobreza", você não deseja o que se tem por seu oposto, a "riqueza". Se o "desejar", já estará fugindo mentalmente, conceitualmente, da pobreza, e nunca a conhecerá, pensando, embora, que a conhece.

"Mas porque hei de ter interesse em conhecer a pobreza, sobretudo a 'minha` pobreza? Numa sociedade de pobres e ricos, qualquer tolo sabe que é melhor ser rico que ser pobre. Vive-se melhor."

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