22/07/2018
Ao
definir como criminosa a mulher que abortou voluntariamente, o discurso de
alguns espíritas quer que todos os casos de aborto voluntário sejam submetidos
à mesma regra e ser ajustados ao critério de Procusto.[1]
A meu ver, a régua doutrinária é genérica e
não contempla as inúmeras nuances que envolvem todos os casos de aborto voluntário, além do problema contido na questão seguinte a que Kardec faz menção do aborto.[2]
O
simples fato de as instituições classificarem o aborto como “crime” não o
impede na prática. Seria simplista demais pensar assim. E o pior é que alguns
espíritas assim se comportam por conta da ausência do debate de temas complexos
e polêmicos dentro das casas espíritas, sobretudo nos cursos de Espiritismo; lá,
temas como este, são tratados de forma linear, ou claramente como tabu. Isto é
grave, porque cria um exército de fariseus e doutores da lei prontos para
atacar quem quiser discuti-los nas “sagradas” dependências de seus templos.
Vejamos o belo registro de João, capítulo 8, versículos 1 a 11 que serve como
texto de apoio em nossa discussão:
- Dirigiu-se Jesus para o monte das Oliveiras. Ao romper da manhã, voltou ao templo e todo o povo veio a ele. Assentou-se e começou a ensinar. Os escribas e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher que fora apanhada em adultério. Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus: Mestre, agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. Moisés mandou-nos na lei que apedrejássemos tais mulheres. Que dizes tu a isso? Perguntavam-lhe isso, a fim de pô-lo à prova e poderem acusa lo. Jesus, porém, se inclinou para frente e escrevia com o dedo na terra. Como eles insistissem, ergueu-se e disse-lhes: Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra. Inclinando-se novamente, escrevia na terra. A essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se foram retirando um por um, até o último, a começar pelos mais idosos, de sorte que Jesus ficou sozinho, com a mulher diante dele. Então ele se ergueu e vendo ali apenas a mulher, perguntou-lhe: Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? Respondeu ela: Ninguém, Senhor. Disse-lhe então Jesus: Nem eu te condeno. Vai e não tornes a pecar
Espíritas
médios, legalistas acreditam que o simples conhecimento de uma lei (dita
divina) é o bastante para frear os instintos humanos de preservação e busca de
prazer e felicidade - a pulsão de vida[3].
Ledo engano.
Com
este raciocínio sentem-se confiantes, supõem que estarão livres de tomar
decisões erradas, de sofrer decepções, de serem castigados pelo simples fato de
terem lido um livro sagrado – no caso o Livro dos Espíritos – que lhes dará o
respaldo necessário para subjugar aqueles instintos[4].
Basta seguir a lei posta e acabada. Simples assim. Não vou entrar no mérito desse
comportamento, mas ele não deve ser desprezado sob uma ótica psicanalítica.
A
conduta de Jesus ante os apedrejadores da adúltera mostra que uma lei, norma, artificio
jurídico explica, mas não justifica o apedrejamento moral de ninguém (no registro evangélico o apedrejamento era físico e fatal) – mesmo que
seja um transgressor. Para mim, está implícita a crítica do mestre àqueles que
classificam o adultério como “crime” e sutilmente modifica o termo para “erro”
– no texto evangélico “pecado”.
Além
de contrariar uma norma vigente, consagrada entre os doutores da lei, Jesus,
claramente, se posta diante da mulher não como juiz, mas como conselheiro
sabedor da liberdade que qualquer um possui de acertar ou errar. Seria como um
pedido que lhe fazia o Mestre para “não errar mais”, ou para “errar menos”.[5]
A
sofisticada conduta de Jesus diante daquele desafio oferecido, insidiosamente,
pelos “observadores da lei” não atinge cabeças-duras de gente que acha a lei
dos homens é igualzinha a Lei Divina. Enquanto aqueles utilizaram (e utilizam) o critério de
Procusto, o Mestre fez uso da régua de Lesbos.[6]
Difícil?
Quem disse que seria fácil? E se disse, mentiu.
[1] Procusto
era um bandido que vivia na serra de Elêusis. Em
sua casa, ele tinha uma cama de ferro, que tinha seu exato tamanho, para a qual
convidava todos os viajantes a se deitarem. Se os hóspedes fossem demasiado
altos, ele amputava o excesso de comprimento para ajustá-los à cama, e os que
tinham pequena estatura eram esticados até atingirem o comprimento suficiente.
Uma vítima nunca se ajustava exatamente ao tamanho da cama porque Procusto,
secretamente, tinha duas camas de tamanhos diferentes. Fonte: Wikipédia.
[2] Tratarei
do aborto em outro momento. Tenho questões a levantar sobre este complexo
assunto.
[3] Uma
pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior
de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob pressão de
forças perturbadoras externas” – Freud.
[4] Chama-se
recalque o mecanismo no qual tenta-se fugir do desprazer, do mal-estar causado
pela supressão do instinto.
[5] Sugestão
de leitura: “Os direitos humanos” Lynn Hunt.
[6] Régua de Lesbos: Tratava-se de uma régua
especial por ser feita de metal flexível, podia ajustar-se às irregularidades
do objeto. Foi empregado por Aristóteles para explicar a função da equidade em
seu ensaio sobre a justiça. Flexível como a régua de Lesbos, a equidade
não mede apenas aquilo que é normal, mas também as variações e curvaturas
inevitáveis da experiência humana.
Muito bom esse texto.
ResponderExcluirAo meu ver nem tudo que é legal é justo. Equidade é um dos conceitos mais controvertidos no direito e na filosofia. No Brasil o juiz só pode utilizar o princípio da equidade para decidir na ausência de lei, ou quando o texto da lei não propicia clara interpretação. Assim, o legislativo em sua função precípua, ficaria com a responsabilidade de inserir o ideal ético de justiça na formação das leis. Esse ideal está presente na nossa sociedade? Creio que não.
ResponderExcluirPrezada Pli, você tem razão. O descompasso entre legalidade e justiça passa, necessariamente, pelo crivo de Aristóteles; a justiça situa-se entre o excesso e a falta segundo o filósofo grego (leia-se "Filosofia do Direito" de Alysson Mascaro). Somos todos sócios de uma mesma sociedade, mas também somos intrinsecamente egoístas. Por isso, o Cristo nos adverte: "se vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus."
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