Quando
Allan Kardec lançou O Livro dos Espíritos, em abril de 1857, abalou
fundamentos profundamente arraigados: o destino humano, antes considerado fixo
e irreversível, foi deslocado para um panorama aberto, sem fronteiras
definitivas, rompendo a tríade tradicional do céu, do inferno e do purgatório.
Essa ruptura despertou a ira da Igreja Católica, ávida por defender suas
estruturas seculares – hoje, o fervor se deslocou para alguns setores
evangélicos, cuja combatividade quase mereceria reconhecimento irônico.
No
Oriente, ideias semelhantes já circulavam há séculos; no Ocidente, entretanto,
a Doutrina Espírita apresentou uma novidade: a concepção de evolução
espiritual, de infinitas possibilidades para o espírito, rompendo a linearidade
do destino. Tal ousadia ameaçava o tecido conceitual que sustentava não apenas
a escatologia[1],
mas toda a autoridade moral e ritual das instituições religiosas.
Quem
estudou o trabalho de Mary Del Priore[2]
ou mergulhou em pesquisas sobre os primeiros grupos espíritas no Brasil conhece
o grau de hostilidade enfrentado: processos judiciais, internações compulsórias
em sanatórios, escárnio público. Era um tempo em que a diferença de pensamento
podia custar a liberdade e a sanidade.
Mas
mesmo dentro do próprio Espiritismo, há uma questão inquietante: a ideia de
meta de perfeição.
Metas,
por definição, exigem clareza. Quero ser engenheiro? Então preciso conhecer a
profissão, estudar matemática e física, compreender onde e como atuar. As metas
organizam a vida: indicam de onde partimos e para onde caminhamos.
Mas
como traçar metas para a vida espiritual? Não há passos claros, instrumentos de
medição, mapas ou cronogramas que conduzam a um “lugar” pós-morte. A incerteza
domina.
E
a dificuldade se aprofunda quando tentamos conceber a perfeição. Se o destino é
incerto, o que dizer da perfeição? Baudrillard[3][3]
lembra-nos que a perfeição, em essência, é a morte: um estado onde nada mais
resta a fazer. Sendo uma abstração que escapa à experiência vivida, não se
presta a metas concretas. Persistir nessa busca seria um convite à frustração –
ou, no mínimo, a doses generosas de clonazepam[4].
Em
síntese: podemos – e devemos – estabelecer metas para a vida terrena, mas é
temerário traçar metas para a vida espiritual. Como diz o Eclesiastes[5],
seria como correr atrás do vento.
Portanto,
concentremo-nos no tangível: pôr comida no prato, quitar a fatura do cartão de
crédito, viver com modéstia e traçar metas no horizonte visível. Seguir
adiante, passo a passo.
Difícil?
Quem prometeu que seria fácil?
[1] Escatologia: doutrina que trata do destino final do homem e do mundo;
pode aparecer em discurso profético ou em contexto apocalíptico.
[2] Mary Del Priore
– Do Outro Lado: A História do Sobrenatural e do Espiritismo, Editora Planeta
do Brasil, 2014.
[3] Jean Baudrillard, sociólogo e filósofo francês (1929–2007).
[4] Anticonvulsivante e de efeito tranquilizante mais conhecido como
Rivotril.
[5] Eclesiastes é um livro
sapiencial do Velho Testamento da Bíblia Cristã.
Humberto, concordo com você quando diz que criar metas não é aconselhável, mesmo porquê estaríamos criando expectativas que acabam nos frustando. Não acredito que "depois da morte não há mais nada", seria muito pouco ou nada, estarmos aqui apenas para comer, dormir, trabalhar, namorar, fazer sexo, trabalhar, pagar as contas. Tudo bem que isso faz parte da vida e nos insere num modelo de normalidade. Porém, penso que estamos aqui para aprender muito mais que matemática ou física, realizar as tarefas cotidianas. Eu, particularmente, busco mais que isso. Uma busca constante por algo que parece não vou encontrar nunca. O que? Se fosse fácil eu já saberia.
ResponderExcluirSejamos o melhor agora, um passo de cada vez e vamo que vamo.
ResponderExcluirA reflexão sempre bem vinda!
Se não é possível controlar nada, imagina a frustração em ter metas espirituais frustradas? Prefiro desfrutar da companhia de pessoas que buscam, como eu, alguma serenidade nesse espaço-tempo. Grande Abraço Humberto!
ResponderExcluirBom Dia, no meu modo de pensar, estabelecer metas tem sua importância para a vida aqui no planeta terra, afinal conforme texto temos que colocar comida no prato. O problema se torna de difícil entendimento quando pensamos em metas espirituais, haja vista que estamos muito longe da perfeição e também carregamos ressentimentos vários, o que nos leva a "jogar" para Deus nossas questões com relação a nossa visão particular de justiça.
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