05/10/2019
Ao
lançar o Livro dos Espíritos, em abril de 1857, Allan Kardec subverte a ideia de destino último e irredutível do ser
humano para três lugares distintos e definidos: o céu, o inferno e o
purgatório. Essa foi uma das razões que levou a Igreja Católica a atacar com muita
força o movimento que surgia na França no século XIX – hoje nem tanto, porque
alguns evangélicos fazem isso com tanta fúria que merecem medalha ao mérito!
Essa
proposta não era nova, pelo menos no Oriente. No ocidente, sim, foi uma novidade, sobretudo na maneira como foi posta pela Doutrina Espírita.
Nesse
caso, tanto a Igreja Católica quanto as outras denominações cristãs sofreram uma
grande ameaça ao leque de conceitos e regras criadas em torno daquela
escatologia[1]
e ao lançar o conceito de evolução espiritual e as múltiplas e infinitas
possibilidades do espírito até a perfeição espiritual. A Doutrina Espírita
derruba a crença em lugares fixos e circunscritos depois da morte. Tal subversão
não poderia ficar impune pelas correntes religiosas dominantes.
Quem
leu o excelente texto da Mary Del Priore [2],
bem como outras teses acadêmicas sobre os absurdos cometidos contra os
primeiros grupos espíritas no Brasil, sabe do que estou falando: processos judiciais que chegavam a
culminar em internação compulsória em sanatórios de saúde mental de espíritas praticantes, e o escárnio derivado dessas medidas.
Mas
há problema no conceito de meta de perfeição tão cultuado no meio espírita.
Quando
traço uma meta, o objetivo a ser atingido deve ser muito claro para mim. Por
exemplo, quero me tornar um engenheiro, então tenho de saber o que faz um
engenheiro, quais sãos os campos em que atua e, obviamente, terei de estudar
bastante matemática e física – duas disciplinas indispensáveis para que eu me
torne um bom engenheiro. As metas, assim como a disciplina, são ordenadoras da
vida: sei onde estou e sei aonde quero chegar.
Mas será que é possível criar uma meta para a
vida espiritual? Creio que não, porque não há nada que eu possa fazer
claramente para atingir determinado “lugar” depois da morte física.
Outra
dificuldade – e essa é a maior de todas – é traçar um roteiro para atingir a
perfeição. Se já é difícil saber para onde vou depois da morte, mais difícil
ainda será a noção de perfeição! A começar pelo conceito de perfeição
apresentado por Baudrillard[3]:
perfeição é a morte, porque depois dela não há mais nada. Não há o que fazer.
Portanto, sendo a perfeição uma abstração, algo que está fora da realidade
vivida, não poderei traçar metas para alcançá-la. Haja clonazepam[4]
caso eu insista em buscar tal meta.
Resumo:
posso (e devo) traçar metas para minha vida aqui na Terra, mas não é
aconselhável ficar traçando metas para a vida no chamado “mundo dos espíritos”.
Neste último caso, posso muito bem fazer referência ao Eclesiastes[5]:
é como correr atrás do vento.
Pelo
exposto, acho melhor pôr comida no prato, pagar a fatura integral do cartão de crédito,
viver com modéstia traçando metas no horizonte mais próximo do meu olhar. E seguir em frente.
Difícil?
Quem disse que seria fácil?
[1]
Escatologia doutrina que trata do destino último do homem e do mundo; pode apresentar-se em discurso profético ou em contexto
apocalíptico.
[2]
Mary Del Priore - Do Outro Lado - A História do Sobrenatural
e do Espiritismo,
Editora Planeta do Brasil, 2014.
[4] Anticonvulsivante e de efeito
tranquilizante mais conhecido como Rivotril.
[5] Eclesiastes
é um livro sapiencial do Velho Testamento da Bíblia Cristã.
Humberto, concordo com você quando diz que criar metas não é aconselhável, mesmo porquê estaríamos criando expectativas que acabam nos frustando. Não acredito que "depois da morte não há mais nada", seria muito pouco ou nada, estarmos aqui apenas para comer, dormir, trabalhar, namorar, fazer sexo, trabalhar, pagar as contas. Tudo bem que isso faz parte da vida e nos insere num modelo de normalidade. Porém, penso que estamos aqui para aprender muito mais que matemática ou física, realizar as tarefas cotidianas. Eu, particularmente, busco mais que isso. Uma busca constante por algo que parece não vou encontrar nunca. O que? Se fosse fácil eu já saberia.
ResponderExcluirSejamos o melhor agora, um passo de cada vez e vamo que vamo.
ResponderExcluirA reflexão sempre bem vinda!
Se não é possível controlar nada, imagina a frustração em ter metas espirituais frustradas? Prefiro desfrutar da companhia de pessoas que buscam, como eu, alguma serenidade nesse espaço-tempo. Grande Abraço Humberto!
ResponderExcluirBom Dia, no meu modo de pensar, estabelecer metas tem sua importância para a vida aqui no planeta terra, afinal conforme texto temos que colocar comida no prato. O problema se torna de difícil entendimento quando pensamos em metas espirituais, haja vista que estamos muito longe da perfeição e também carregamos ressentimentos vários, o que nos leva a "jogar" para Deus nossas questões com relação a nossa visão particular de justiça.
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