14/08/2019
Fui convidado para uma palestra
sobre o tema “Bem-aventurados os aflitos” em um centro espírita e causei
indignação a alguns ouvintes; saíram de lá bastante incomodados e
apreensivos, porque esperavam um discurso que trouxesse consolo e não algo que
as incomodasse tanto.
Admito que a linha de raciocínio
que escolhi para falar sobre o tema não foi muito agradável, embora eu tenha
me colocado no centro da discussão falando sobre experiências pessoais e concluindo
com algo, presumo, nada comum.
Esse sintoma demonstra, de certa
maneira, como os centros espíritas formam novos trabalhadores – a meu ver,
pouco propensos ao debate de ideias – bloqueando talentos que procuram a casa
espírita para o seu desenvolvimento psicológico-espiritual. Com isso, o centro
não cumpre o papel de fonte de formação de uma massa crítica atuante no mundo.
Anos atrás, ao discutir sobre
essa e outras questões em um grupo de conversa chamado “Fórum Espírita” recebi
a seguinte resposta de uma moça muito bem intencionada (não estou sendo
irônico): “você está se preocupando em debater, enquanto eu estou procurando
melhorar o mundo com o meu trabalho e levar consolo às pessoas”. Chique, não
acha? (estou sendo irônico).
Muito desse sintoma relaciona-se
com a forma não objetiva de ver o mundo e a pedagogia oferecida nessas casas.
Não há nenhum sinal de revisão dessa maneira de ensinar com visos de
domesticação; nenhum debate mais profundo; nenhum gesto de abertura. Tudo
apostilado, seriado e nos trilhos.[1]
A visão objetiva do mundo não é
discutida quando se fala desse tema – os aflitos. Os discursos seguem um padrão
de consolação dos sofrimentos, da resignação diante da vida e seus obstáculos,
de aposta no futuro espiritual e da explicação simples de que nossos problemas
estão intimamente relacionados aos erros de vidas passadas.
Nada de políticas públicas, de crítica dos serviços oferecidos à população mais carente a qual assiste.
Nada de políticas públicas, de crítica dos serviços oferecidos à população mais carente a qual assiste.
Os cristãos primitivos
enfrentavam leões nos circos, crucificação sumária, esfolamento e torturas de
seus perseguidores, sem compensações, embora houvesse a promessa de um mundo
melhor além da morte. Não eram mimados. Não havia neles a presunção de serem
missionários que mudariam o mundo como alguns espíritas de hoje. Seu sacrifício
demonstrava a força de sua fé.
Enquanto um exército de espíritas-cristãos
assume a “missão” de transformar o mundo e regenerá-lo com cestas de natal,
balas e brinquedos para crianças remelentas e sujas[2],
eles desviam totalmente do papel precípuo de um centro espírita imaginado por
Kardec: fonte de conhecimento e transformação moral intrínseca.
A grande ausente na escola
espírita é a autocrítica, ao invés dela o que se vê são ajustamentos e panos quentes, e isso traz
consequências muito danosas ao movimento iniciado por Allan Kardec.
Afinal, por que causei espanto e muito mal-estar pela exposição do tema sobre os aflitos?
Porque eu tinha duas opções:
oferecer aos meus ouvintes a pílula azul[3]
ou a vermelha. Pelo peso do tema escolhi a vermelha – que a meu ver
caracteriza uma espiritualidade só vivida, inicialmente, no deserto - e para
aqueles acostumados a tomarem a pílula azul, tão presente em obras psicografadas de
autoajuda açucaradas e cheias de pieguismo. Também não ofereci a chupeta psicológica
tão desejada e saíram chocados de minha exposição. De novo: esquecem-se do
batismo de Jesus eloquentemente informado pelo seu primo João, o batista[4].
Há outra passagem evangélica em
que João – agora preso por Herodes – pede aos seus mensageiros que procurem Jesus para
perguntar-lhe sobre o Messias. A resposta de Jesus (aqui reproduzo só o final
dela) é a seguinte: Feliz é aquele que
não vê dificuldade em me aceitar[5].
Ora, se o batismo de Jesus é com
fogo, aceita-lo equivale a escolher a pílula vermelha, porque para os iludidos
a verdade queima, corta e dói.
Difícil? E quem disse que seria
fácil?
[1]
Tenho de fazer justiça ao grupo liderado pela pedagoga Dora Incontri que tem se esforçado na implantação de uma pedagogia
mais ampla, profunda para a formação de agentes com um mínimo de repertório
crítico nesta importante área.
[2]
Sei que tem gente que vem com o blá-blá-blá dizendo que estou desqualificando o
trabalho assistencial das casas espíritas. No meu entendimento, a casa espírita
deveria ser um centro de formação de gente que atuasse nas áreas assistenciais em
qualquer lugar do mundo e não somente no centro espírita a que pertence.
Precisa desenhar?
[3]
Referência ao filme Matrix, quando Neo tem de escolher entre
voltar para sua vida de aparências, ilusões e tédio a partir da pílula azul ou
encontrar o mundo efetivamente real – embora desconhecido – ao ingerir a vermelha.
O protagonista decide conhecer a Matrix, um poderoso sistema de
computadores capaz de escravizar os humanos a partir de seu controle
intelectual.
[4]
“Eu os batizo
com água para arrependimento. Mas depois de mim vem alguém mais poderoso
do que eu, tanto que não sou digno nem de levar as suas sandálias. Ele os batizará com o Espírito Santo e com
fogo.” (Mateus, 3,11)
[5] Mateus, 11, 1-6
Muito estranho, o debate visto como algo prejudicial, um temor pq irá causar polêmica, dizer que não Concorda é uma heresia! Senso crítico na casa espírita passa longe... Que pena.
ResponderExcluir