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O CAMINHO DA SALVAÇÃO

06/12/2016


Um diálogo entre Krishnamurti e a mulher que perdera o marido o qual deixara uma grande fortuna, mas não menor vazio pela sua morte me mostrou como montamos defesas internas para aguentar a dor de perdas irremediáveis.

Aquela mulher sofrida, explicava ao pensador indiano que, para “preencher” o buraco provocado pela ausência de seu companheiro criara uma fundação beneficente para aliviar a dor da perda e, apesar da alegria em ajudar muitas pessoas necessitadas, não conseguia alcançar o fim desejado.

Krishnamurti, com seu jeito peculiar de quem nunca brincava em serviço e não tinha a mínima intenção de mimar ninguém, disse-lhe: “nessas condições, é melhor você fechar a instituição”. A pobre mulher rica reagiu: “e o que eu ponho no lugar?!”; resposta de Krishnamurti: “Nada, porque qualquer coisa que você colocar no lugar será uma simples troca de objetos e não resolverá o seu problema de fundo.”.

Uma leitura superficial da atitude de K pode levar à falsa ideia de sua insensibilidade, mas o que o pensador indiano estava provocando naquela mulher era sua atenção para os mecanismos que ela mesma desenvolvera para se livrar do sofrimento, mas que não havia interesse algum por uma leitura interna e distraia-se com ações sociais e reconhecimento público com o fim de compensar a sua dor utilizando-se da instrumentalização do outro, mesmo que sua ação fosse “nobre”.

Neste caso, o mecanismo de defesa se instala na clássica substituição de valores os quais mais não fazem que revigorar aquele incômodo.

No meu caso, acho que ao me esforçar na transmissão de conhecimento em sala de aula, ou neste blog que criei, subjaz a expectativa de valorização cuja intenção está na desconfiança de minha pequenez e insignificância diante da realidade; e pode ser um artifício encontrado para compensar aquela noção.

Muito oportuna é a composição Copo Vazio para exemplificar o que digo aqui:


Copo Vazio
Composição de Gilberto Gil

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar.

É sempre bom lembrar,
Guardar de cor que o ar vazio
De um rosto sombrio está cheio de dor.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.
Que o ar no copo ocupa o lugar do vinho,
Que o vinho busca ocupar o lugar da dor.
Que a dor ocupa metade da verdade,
A verdadeira natureza interior.

Uma metade cheia, uma metade vazia.
Uma metade tristeza, uma metade alegria.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.
A magia da verdade inteira, todo poderoso amor.

É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar.

Há outro viés nessa história: o de me comparar com alguém o qual dedico grande admiração, e subliminarmente invejo por julgá-lo mais ancho de bem-estar e boa vida. No entanto, há problemas nessa comparação como aponta Raimundo Correia em seu poema “Mal Secreto”

                    Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma e destrói cada ilusão que nasce;
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
            Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente talvez que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
           Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
           Quanta gente que ri, talvez, existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

O “deslocamento” processado por mim em defesa da tão almejada felicidade traz grande amargura, porque se configura em processo bastante doloroso. Vejamos o que  diz Vicente de Carvalho:

Felicidade

Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada:
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada,
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa, que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim : mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.

Por isso, ao perceber que qualquer tentativa de fuga dessa dor é inútil e ao me situar nela com todo o interesse e atenção, constatando minha pequenez, minha insignificância e mediocridade; de não passar de um imitador ruim de ídolos, simulacro de santos, repetidor de sentenças e frases de efeito, ocorre algo paradoxal: na consciência dessa pobreza de talento e gênio, acabo percebendo que estou a caminho de minha libertação – algo similar à salvação tão cara aos cristãos, porque não perco de vista a afirmação do Cristo: o Reino de Deus está no mais fundo da minha alma e não fora de mim.

Talvez, por esta razão, o apóstolo Paulo tenha dito, em uma de suas cartas, o seguinte:

Por isso sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.

                                                                                                                                   2 Coríntios 12:10

Difícil? E quem disse que seria fácil?

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