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CULPA - parte I


17/08/2017

A culpa é um sintoma no qual a consciência começou a operar no psiquismo daquele que, pouco antes, agia por impulso, em determinado campo, e sem nenhum limite. Para ser mais direto: é aquele que vivia no piloto automático e, de repente, descobre que está com o manche nas mãos.

A culpa pode levar a um estado de espírito onde as funções da responsabilidade começam a vicejar. Contudo ela não é, necessariamente, a via pela qual o sujeito que vivencia esse mal-estar deve dar um passo à frente para fazer desse sentimento algo positivo, caso contrário transformar-se-á em algo muito pior do que a ignorância propriamente dita – o remorso.

O remorso é um sentimento de auto-condenação, de necessidade de reparo urgente. Ele fere a alma profundamente deixando-a doente caso não haja caminhos de reparação e quando não encontra essas vias de “purgação”, por várias razões, acaba paralisado na auto-comiseração.

No topo de estados ruins da alma, sem dúvida, está o ressentimento, porque leva o sujeito a agir sob a alegação de que foi vítima e de apontar os culpados pela sua desgraça, portanto o passo seguinte, não menos ruim -  o escapismo.

Por outro lado, não é fácil viver retamente e com equilíbrio, uma vez que defendo que nossas escolhas, em sua maior parte, serão ruins, trarão frustração e, consequentemente, poderão trazer grande culpa. Temos de estar preparados para essas “desavenças” internas.

Contudo, é bom salientar que a “culpa” não é algo de todo ruim, porque o seu oposto – a ausência desse sentimento – caracteriza um psicopata. O que contraria de certa maneira a tese barata de autoajuda “de que é necessário livrar-se da culpa para ser feliz”. A culpa é, de certa maneira, um antídoto contra a indiferença e a ignorância, porque incomoda o seu portador.

Creio que Paulo, o apóstolo, entendera bem isso ao afirmar, em sua carta aos Romanos Capítulo 7 versículo 19: “Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço."

Desse modo, na consciência da própria culpa, da própria fraqueza é que se consegue alavancar a vida, dando-lhe um “tônus” mais consistente cuja exigência é uma grande coragem para enfrentar os próprios “demônios”. O bônus traz o seu ônus.

Sentir culpa por qualquer ação, não-ação, palavra ou gesto é normal; o que não é saudável é ficar “martelando” nela como se isso fosse resolver alguma coisa, sobretudo se o intuito é de mostrar humildade aos outros – uma evidência de mau-caratismo.

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