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DESCONFIO QUE DEUS GOSTE DE MIM


23/12/2016

Desconfio que Deus goste de mim, não pela religião que me molda pelo medo da “Mão Divina”, acovardado diante da Vida que me apresenta desafios quase sempre espinhentos e diante dos quais corro atrás da própria fé como miserável pedinte e por causa disso ajo como um  bajulador de Deus para garantir Sua interferência, e, de quebra, uma promoçãozinha espiritual.
Desconfio que Deus goste de mim por minha rebeldia, minha desobediência (que lá no fundo é a substância da coragem de me admitir pecador); pela minha aguda noção de pequenez, de insignificância, de minha mediocridade muitas vezes travestida em ira, inveja, despeito, prepotência.
Desconfio que Deus goste de mim por ser assim sem temor ao que Ele acha de meus pecados, de minhas brigas e desavenças, de minha preguiça e indolência sem máscaras.
Desconfio que Deus goste de mim, porque Ele sabe o que acho da tentativa de humanizá-lo com expressões do tipo “se Deus quiser...”, e seu complemento: “... e Ele há de querer...”. Expressões da imbecilidade humana em acreditar que Deus – a Inteligência Suprema do Universo – vai se dobrar aos caprichos de gente tola e mimada, obediente e temerosa às Suas Leis, como bajuladores fazendo mesuras ao Seu Olhar Absoluto.
Desconfio que Deus goste de mim, por saber de tantas leis criadas pelos homens - em Seu Nome - para servir de mordaça e garantir o domínio sobre todos com seus signos e símbolos, roupas especiais e ricos rituais.
Desconfio que Deus goste de mim por não me sentir culpado diante Dele, mas responsável pelas minhas escolhas.
Desconfio que Deus goste de mim, porque acredito que Ele não ama mais Jesus do que a Lúcifer.
Desconfio que Deus goste de mim, por entender que o ódio é a ausência de amor, assim como a escuridão é ausência de luz. Que sei o Amor é a quintessência da compreensão, e que só odeiam aqueles que não compreendem. Por isso Jesus pediu a Deus que perdoasse àqueles que o crucificaram por não saberem o que faziam.
Desconfio que Deus goste de mim, porque sabe que eu não O amo; e não O amo porque minha capacidade de amar ainda se vincula àquilo que vejo, toco e entendo...
Desconfio que Deus goste de mim, porque me cheira a mofo a imagem de São Miguel Arcanjo pisando a cabeça do infeliz demônio, submetendo-o de forma grotesca e cruel.
Desconfio que Deus goste de mim, por achar que o crescimento espiritual efetivo não se dá por esforço. A pessoa que se esforça para trabalhar, não trabalha efetivamente; ela apenas cumpre determinadas tarefas por dever ou interesse. O crescimento espiritual não se dá “por dever” muito menos por interesse, mas por compreensão. Lembrando Gibran, as árvores de nossos pomares não se esforçam para dar frutos...
Desconfio que Deus goste de mim, porque não gosto de rezar, principalmente aquelas rezas longas, enfadonhas, barbitúricas; também porque Sabe de meu entendimento quando Jesus fala aos discípulos: E, quando orardes, não sejais como os hipócritas, pois que apreciam orar em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem admirados pelos outros. Com toda a certeza vos afirmo que eles já receberam o seu galardão.
Prefiro não rezar e buscar Deus na imensidão do Cosmos ou na formiga que passa apressada pelo meu caminho.
Desconfio que Deus goste de mim, por procurar me comportar dentro dos parâmetros do humano: com contradições, conflitos e pecados, sem o forçamento de santidade, de bondade que caracterizam os normopatas – aqueles mesmos os quais Jesus chamava com tanta veemência de hipócritas.
Por essas e por outras razões desconfio que Deus goste de mim.
 


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