Cuidem para não fazer o bem só para aparecer diante dos outros, querendo chamar atenção.
Quando ajudarem alguém,
não façam disso um espetáculo, como fazem os hipócritas nos templos e nas ruas
para serem elogiados pelos outros.
Eu afirmo a vocês: essa já
é a única recompensa que eles terão.
Mas quando você ajudar
alguém, faça isso de forma discreta, sem alarde, a ponto de a sua mão esquerda
nem saber o que a direita está fazendo.
Evangelho de Mateus, 6:1-3 (a linguagem utilizada aqui não é original, foi modernizada para conforto de quem lê)
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Causa estranheza a advertência do Mestre sobre a “mão esquerda” e com ela podemos levantar a seguinte questão:
Há um evidente paradoxo: como pode uma parte do corpo ignorar o que faz a outra, se ambas pertencem a um mesmo organismo?
Alguém com mente “brilhante” vai dizer que se trata de uma metáfora utilizada pelo Mestre.
Respondo: mesmo assim a metáfora me parece absurda e é disso que aqui estou tratando.
O senso comum entende que a metáfora fala que nossa ação em favor de alguém seja tão discreta que a mão esquerda não saiba o que dá a direita e ponto. Mas podemos explorá-la em outra camada.
Conflito intrapsíquico e mutualidade
Para que não houvesse conflito de interesses entre os membros do mesmo organismo – como nos leva a pensar a metáfora - ambas as mãos deveriam, juntas, fazer e dar ao mesmo tempo; ou melhor, todo o organismo deveria funcionar numa ética de repartir tão natural que todo o conjunto do ser estaria envolvido a exemplo das bactérias no intestino humano.
Acontece que esse mal-estar está no fato de que somos muito egoístas e, por isso mesmo, quando damos algo a alguém, na maioria das vezes, o fazemos condicionando, mesmo que não verbalizando ou até de forma consciente, nossa atitude espera um retorno, seja ele material ou simbólico. Quando não ao nível consciente, essa espera por gratidão (no caso simbólico) vem do inconsciente, no qual não há como esconder nossa real identidade egoística e egocêntrica.
Não se trata apenas de fazer o bem em segredo, mas de anular o desejo inconsciente de reconhecimento, de romper com o apelo narcísico da retribuição — inclusive a simbólica: a gratidão.
Em outras palavras: Nesse ponto, a metáfora ganha espessura existencial: o gesto de doar sem esperar nada em troca exige um desprendimento da própria identidade egoica, como se houvesse dentro do sujeito uma cisão entre o Eu que doa e o Eu que espera gratidão. A mão esquerda seria, assim, o polo inconsciente que, ao saber do gesto, reclama e se frustra com a ingratidão.
Podemos resumir tudo isso numa frase: a figura da ingratidão é o espelho polido da expectativa de gratidão que, ansiosamente, aguardamos ao favorecermos alguém, mas que não vem.
Isso subverte a lógica moral tradicional, pois desloca a responsabilidade do “ingrato” para o doador que projeta seu desejo de reconhecimento no outro, transformando o ato de dar num investimento emocional com retorno esperado.
O doador como testemunha
O filósofo de origem libanesa Gibran Khalil Gibran toca essa questão de maneira profunda e definitiva. Ele, de certa maneira, ataca a ideia de propriedade como sendo uma ilusão [dá para concluir de seu escrito que nada é de ninguém, nem mesmo o corpo do qual fazemos uso – isto está de acordo com a doutrina espírita e com próprio Cristianismo]. Vejamos o que ele diz em seu livro O Profeta:
Há os que dão pouco do
muito que possuem, e fazem-no para serem elogiados, e seu desejo secreto
desvaloriza suas dádivas.
Há os que pouco têm e
dão-nos inteiramente.[1]
Esses confiam na vida e na
generosidade da vida e seus cofres nunca se esvaziam[2].
Há os que dão com alegria
e essa alegria é sua recompensa.
Há os que dão com pena, e
essa pena é seu batismo.
E há os que dão sem sentir
pena, nem buscar alegria e sem pensar na virtude.
Dão, como num vale o mirto
espalha sua fragrância no espaço.
Pelas mãos de tais pessoas
Deus fala; e através de seus olhos Ele sorri para o mundo. [...]
[...]Procurai ver,
primeiro, se mereceis ser doadores e instrumentos do dom.
Pois, na verdade, é a vida que dá a vida, enquanto vós, que vos julgais doadores, sois simples testemunhas.”
Essa maneira de dar - como se fôssemos apenas testemunhas - anularia por completo a ideia de ingratidão. Com isto, nos livraríamos da mágoa, do ressentimento que atormenta nossas almas alimentadas pela busca de reconhecimento de nossa suposta bondade.
Tudo o que falamos até aqui lembra da ética próxima a Albert Camus, na qual associa o absurdo: saber que o mundo não responde às nossas expectativas e, ainda assim, continuar a agir com generosidade. Amar o mundo mesmo quando ele não nos retribui — isso é liberdade, é maturidade, é grandeza com as quais o Mestre nos convoca a pensar.
Para fechar, cito Michel de Montaigne:
Acredito que é preciso viver por direito e por autoridade, não por recompensa nem por graça [...]. Evito submeter-me a qualquer tipo de obrigação, mas sobretudo àquela que me vincula por dever de honra. Procuro não fazer nada que não me seja dado fazer e aquilo pelo que a vontade permanece hipotecada por título de gratidão, e recebo com maior bom grado os ofícios que estão à venda. Acredito que para estes últimos eu dou apenas dinheiro, para os outros, dou a mim mesmo. (destaque meu)
Michel de Montaigne, Ensaios.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Certamente, Gibran faz alusão à passagem do Evangelho de Marcos no
capítulo 12:41-44 onde consta o seguinte:
"O óbolo da
viúva" refere-se a uma passagem bíblica onde Jesus observa uma viúva
pobre depositando duas pequenas moedas na caixa de ofertas do templo, enquanto
pessoas ricas faziam doações maiores. Jesus então comenta que a viúva dera
mais do que todos, pois ela contribuíra com tudo o que tinha, enquanto os ricos
doaram apenas do supérfluo.
[2] É óbvio que Gibran não está se referindo ao dinheiro,
mas ao cofre da alma que se enche pela alegria de ser útil em algum nível. Esse
sentimento amoroso não se esgota, porque quanto mais damos mais temos para dar.
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