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O QUE PODE O ÓDIO?

Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo e tirar-te a vestimenta, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pedir e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes.

43 Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, para que sejais filhos do Pai que está nos céus;

Mateus, 5:38-45

+++++++++++++

Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra a se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão

As vitrines por Chico Buarque de Holanda

https://www.youtube.com/watch?v=wZOuu5_wu_k

++++++++++++++

Como vemos no trecho do Evangelho de Mateus, o Mestre exorta os seus discípulos ao amor aos inimigos. Isto não é nada fácil para a grande maioria de nós.

Pergunta nº 1: O Mestre não sabia que a maioria quase absoluta dos seres humanos não consegue nem perdoar as ofensas, quanto mais amar?! Não sabia ele que, para a maioria de nós, o amor é visto de maneira estreita de entendimento?

Numa chave epistemológica, podemos admitir que o amor é a quintessência da compreensão — uma forma profunda e abstrata desse sentimento.

Em outras palavras: para alcançarmos a capacidade de amar à qual o Mestre evoca, temos de, obrigatoriamente, passar pelo caminho da compreensão. Sem compreensão, ou amamos pouco, ou não amamos nada.

A compreensão, por sua vez, exige de nós um vivo interesse pelo outro — e de forma desarmada. Um interesse legítimo em saber como o outro funciona, quais são suas motivações, quais são suas limitações, enfim, qual é a sua história.

Depois de ter tido contato com neurocientistas que se debruçaram sobre o comportamento de serial killers — os assassinos em série —, descobri que a maioria deles sofreu, desde o útero, agressões de todo tipo. Na primeira infância, foram abusados, abandonados, agredidos de múltiplas formas, passaram pela fome, pelo frio, não conheceram o colo materno nem o abraço do pai e, por isso mesmo, sofreram lesões no funcionamento neurológico e traumas profundos em seu psiquismo.

É óbvio que isso não é uma regra rígida. Há pessoas que passam por processos semelhantes e não se tornam assassinas. Mas as pesquisas indicam que muitos deles apresentam problemas neuropsicológicos em função daquelas agressões.

Essa compreensão, obviamente, não me levou a amá-los, mas a distingui-los como semelhantes que merecem compaixão. Compaixão que pode muito bem ser a semente do amor plantada no coração.

(É bom dizer, para os irritadinhos de plantão, que há indivíduos que precisam, sim, permanecer presos para não cometerem novos crimes — principalmente aqueles que envolvem agressões seguidas de morte. Mas que, pelo seu histórico, devem ser tratados com humanidade.)

Pergunta nº 2: Se não conseguimos compreender — e muito menos amar — o nosso inimigo, o que acaba habitando nossa alma?

A resposta é quase óbvia: o ódio. E aí vem a pergunta deste texto:

O que pode o ódio?

Com este título, abro um espaço para refletir sobre esse sentimento tão forte em todos nós, humanos — o ódio. Sim, humanos, porque os demais animais não agem com crueldade; sua violência vem dos instintos de preservação, de sobrevivência e de demarcação de territórios — necessária para a manutenção das duas anteriores.

Ao contrário, alimentamos o ódio ao longo de anos, muitas vezes por conta de um momento, um ponto de nossa biografia. E ali, naquele ponto, nos fixamos com todo o rancor que podemos nutrir e, como um disco de acreção à beira de um buraco negro, giramos e giramos — até a morte.

À maneira de carrapatos, sugamos toda a energia possível para cultivar o sentimento destrutivo da vingança que, desgraçadamente, não esgotamos, por conta de nossas possibilidades reduzidas, nossas forças muito fracas diante do nosso alvo. E implodimos no excesso de fantasias sobre as formas de fazer sofrer o outro que nos afetou tanto.

Esse ódio, como uma terrível metástase, nos consome de dentro para fora. Aos poucos, vai convertendo esse mal da alma em doenças psicossomáticas que nos deprimem, enfraquecem, destroem nossa vitalidade — as quais nenhum unguento, nenhum poderoso opioide poderá acalmar.

Nesse processo, nossa alma murcha e seca.

O desejo de vingança é aquele no qual o sujeito retorna indefinidamente ao passado para reviver o momento da ofensa. Esse olhar para trás faz com que a alma adoeça de tal modo que, à maneira da esposa de Lot, transforma-se em estátua de sal — onde nada brota.

Então, caso odiemos, nossa solidão é enorme. Nosso espírito amarga como fel. Nada nos alegra. Não ouvimos o som dos passarinhos que cantam ao amanhecer. O que ouvimos é um chiado constante, repetitivo — o piado de uma ave que espera pacientemente a hora de nos bicar os olhos.

Todas as cores do mundo cedem lugar a um cinza melancolicamente profundo. E, quando a morte vem e nos leva daqui, deixa para trás — para os que ficaram — apenas a vontade de esquecer e apagar aquele espinho que incomodava a todos à sua volta.

E somos esquecidos como poeira, sem nenhuma semente para ser plantada para as futuras gerações. Seremos como o joio da metáfora do Cristo: retirados para serem queimados.

E morremos irrelevantes, sem deixar nenhum sinal de poesia entornada no chão. E o que sobra é a pedra de granito fria e escura, com a poeira que o tempo acumulou, sobre a qual destaca-se um vaso com flores de plástico, um nome com data de nascimento e de morte, eventualmente uma foto — todos amarelados pelo abandono e pelo tempo.

Talvez — não sei — por isso o Mestre, sabendo dessa tragédia, tenha nos solicitado que amemos aqueles que nos ofenderam. E, por fim, poderemos — como diz Chico Buarque — deixar um pouco de poesia espalhada pelo chão por onde passamos.

O Mestre sabia que, no fim das contas, amar o inimigo talvez seja menos sobre o outro e mais sobre a chance de não nos perdermos de nós mesmos; que resistir ao ódio é, muitas vezes, um ato de beleza.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

Comentários

  1. "Simultaneamente" finalizo minhas leituras neste blog com uma postagem de profunda meditação tal qual a que retomei há 48 horas.

    Descreveste com fino trato a nossa alma, despida de aparências, refletida na essência de nossa ipseidade.

    O processo de filtragem das nossas emoções 'poluídas' assemelha-se à primeira etapa de tratamento de água que passa por grades para reter galhos, folhas e demais detritos.

    As etapas seguintes são mais refinadas e longe estamos de sentimentos purificados.

    Mesmo cientes do nosso real estado, ao menos escoamos algumas impurezas. Melhor do que água parada.


    Reiterando, ao ficar quites das leituras atrasadas aqui levo a sensação dupla de: contentamento e de agradecimento por este seu elixir sensível e forte nas ideias.

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