Pintura representando Stanczyk, o bobo da corte, que em profunda tristeza lê uma notícia ruim, enquanto a festa com risos ruidosos continua ao fundo.
Jan Matejko, 1862.
Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado* ao curso da sua vida?
Jesus (Mateus, 6:27)
*Um côvado é uma antiga unidade de medida de comprimento, equivalente à distância entre o cotovelo e a ponta do dedo médio de uma pessoa. É uma das mais antigas unidades de medida, utilizada por diversas civilizações.
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O homem faz planos e Deus
ri.
Ditado judaico.
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Muita
gente já se debruçou no tema do riso.[1]
Curioso
que sou, fui buscar informações sobre essa característica, que, dizem alguns, é
marcantemente humana. Mas não busquei por acaso. Explico:
Há dois meses, estava eu fazendo planos após duas cirurgias a que deveria me submeter. Planilha feita, médico contatado, exames preliminares nas mãos, parecia que a vida estava sob controle. Mas...
A administradora do imóvel em que morava me ligou e, muito gentilmente, informou que a proprietária do imóvel pedia a casa, dando prazo legal de 30 dias para eu desocupar.
Busquei, então, voltar para a cidade onde morei anteriormente.
Por mais organizada seja uma mudança de casa e de cidade, a vida se desorganiza sem pedir licença. São coisas que não cabem na nova casa; é a escolha do que vai para o lixo ou vai para doação; são as viagens obrigatórias para conhecer e contratar um novo imóvel e a adaptação ao novo ambiente. Mistura vertiginosa de desapego forçado e a incerteza do que virá.
Sobrou de tudo isso a autenticidade das frases acima: por mais que a medicina avance, não podemos aumentar o curso de nossa vida indefinidamente, dizia o Mestre há mais de 2 mil anos.
Os planos que tinha foram adiados ou definitivamente cancelados. Percebi, mais uma vez, o quanto sou frágil e impotente diante da contingência que me rodeia.
Fui lembrado, mais uma vez, que tudo isso nos provoca sofrimento, principalmente porque o “riso tornou-se a trilha sonora do mundo”; mundo indiferente às angústias da vida. A dor estampada no quadro de Jan Matejko mostra com beleza e espanto essa dicotomia que inferniza a todos.
E Deus ri, como diz o velho ditado judaico.
Ri de nossas fantasias e ilusões de poder e controle.
Consta uma advertência, no registro do evangelista Lucas, capítulo 6 versículo 25: Ai de vós, os que agora rides! Porque haveis de lamentar e chorar.
O Mestre não quis inocular tristeza no coração dos que riem, mas adverti-los do perigo da indiferença à dor dos que sofrem, tornando-os desumanizados.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Só para citar alguns: “História do Riso e do Escárnio” de George
Minois; “O Riso e a significação do cômico” de Henri Bergson; “O Valor do Riso e
Outros Ensaios” de Virgínia Woolf; “O Livro do Riso e do Esquecimento” de Milan
Kundera.
Seu texto é um belíssimo testemunho da vulnerabilidade humana diante da vida – ou, melhor dizendo, diante da contingência. Ao costurar referências visuais, espirituais e literárias, você constrói um mosaico sensível que trata do contraste entre a aparência de controle e a realidade da instabilidade. A imagem de Stanczyk — o bobo da corte mergulhado em tristeza enquanto a festa prossegue — funciona como uma poderosa metáfora da lucidez em meio à alienação coletiva.
ResponderExcluirA forma como você articula as citações é admirável. A pergunta de Jesus sobre o "côvado a mais", o ditado judaico sobre os planos humanos, e a advertência do Evangelho de Lucas criam um pano de fundo denso, mas não desesperador. Há um lamento, sim, mas há também percepção, consciência — o que não é pouca coisa.
Você escreve:
“A dor estampada no quadro de Jan Matejko mostra com beleza e espanto essa dicotomia que inferniza a todos.”
De fato, a dor lúcida, ao contrário do riso fácil, nos humaniza. O riso, como bem pontuado em sua citação a Lucas, quando indiferente, se transforma em zombaria insensível — algo muito diferente da leveza que, por vezes, salva.
Seu texto também toca, com delicadeza, o tema da impermanência. A casa que deve ser deixada, os planos adiados, a planilha cuidadosamente traçada que vira papel inútil — tudo isso revela um mundo em que o chão pode sumir sob nossos pés a qualquer instante. E, ainda assim, precisamos caminhar.
Para finalizar, arrisco um comentário inspirado em Nietzsche, que parece dialogar com seu espírito: o riso, quando consciente do abismo, pode ser também um ato de coragem — não zombaria, mas resistência.
Bom dia meu irmão e amigo mais uma vez,as palavras na sua boca são pérolas a nós levar a profunda introspecção da vida e rever os castelos que nós construimos a todos os dias de nossas vidas Namastê
ResponderExcluirToda mudança exige espaço e silêncio. Essa história me fez lembrar de uma das mais belas composições do nosso cancioneiro popular: "tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor". A música de Nelson Cavaquinho fica ainda mais extraordinária aqui: https://www.youtube.com/watch?v=NMM5-UV3xE4&t=10s
ResponderExcluirPeço licença para trazer os versos abaixo da música "Soneto da separação", do Tom Jobim:
ResponderExcluirDe repente do riso, fez-se o pranto
Silencioso e branco, como a bruma
E das bocas unidas, fez-se a espuma
E das mãos espalmadas, fez-se o espanto
De repente da calma, fez-se o vento
E dos olhos desfez a última chama
E da paixao, fez-se o pressentimento
E do momento imóvel, fez-se o drama
De repente, não mais do que de repente
(...)