Pular para o conteúdo principal

INVENÇÃO E MENTIRA

 Foto James Webb/Nasa

Resultado de explosão de Supernova em Cassiopeia A

(distância da Terra: 11 mil anos-luz)

"Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira" 

Manoel de Barros[1]

Penso que essa foi a intenção do poeta nesta frase, na qual demonstra firmeza de caráter em assumir que mentia – bem menos do que inventava.

Se assim for, então, estou nessa, pelo menos idealmente (risos).

+++++++++++++

Tem gente que procura ser rígida em seus pontos de vista. Nada contra, mas nada a favor. Cada um sabe de si.

O problema da rigidez de opinião é o risco que o seu portador, de repente, vê estilhaçar o seu psiquismo na primeira experiência contrária às suas expectativas. Não há nada de moral na ação de bactérias, vírus, fungos e mutações gênicas. Elas ocorrem à nossa revelia.

Não precisamos ir tão longe assim, dou um exemplo banal: o torcedor de um time torce, rasga a camisa do seu time de coração, chora, reza, mas nem sempre obtém o resultado de sua fervorosa fé. Um desvio qualquer da bola pela ação do vento, do erro de cálculo de um jogador qualquer, pode levar sua esperança de ver seus ídolos com a taça nas mãos a ir por terra num instante.

+++++++++++++

A mentira é intencional, perpetrada, insidiosa, maliciosa às vezes. Já a invenção, não.

A invenção é algo que se caracteriza pelo seu ineditismo. Sim, porque se não fosse inédita, seria uma repetição e não uma invenção.

Algo que revela a visão particularíssima de alguém do mundo da vida e das coisas. Em outras palavras: é como se, o tempo todo, “inventássemos” o que narramos a respeito da realidade que nos cerca.

Esse é outro ponto importante: o que me torna um observador do mundo são os limites de minha pele e, extensivamente, o do meu períspirito. O mundo me afeta quando penetra as bordas da minha alma e, dessa experiência, eu formo uma opinião a respeito de tudo o que senti, ouvi, provei.

É mais ou menos o que diz Ivan Lins em parceria com Vitor Martins em uma bela canção chamada “Daquilo que eu sei”. É belíssimo perceber que, após as experiências vividas, a canção indica que não deve haver sobras de culpa. Viver é experimentar. Só não erra quem nada faz (caso queira ouvi-la, clique no link abaixo).

Se você acha que eu estou errado, que minha escrita é falaciosa, que o meu repertório é pobre, que estou delirando quando escrevo, blá-blá-blá, fazer o quê?

Pessoas há que fazem uma viagem de trem e se fixam na cor do banco da frente; outras, como Caetano Veloso, verão uma profusão de cores passando pelos seus olhos. Ouça a canção “Trem das Cores” de sua autoria: (caso queira ouvi-la, clique no link abaixo).

Peço desculpas, mas terei de aprender de outro modo. Para isso, tenho de experimentar. Só a experiência na pele faz com que mudemos de opinião, do modo como vemos o mundo. Leva tempo. O resto é chover no molhado.

Que posso eu fazer se sou Res opinans?[2]

Se me entendo como uma metamorfose ambulante?

Como uma onda no mar?[3]

Não me coloco assim, porque Lulu Santos e Raul Seixas disseram, mas porque não é difícil constatar essas mudanças.

E quem não é mutante? Tem gente que acha não ser por achar de posse das últimas verdades, mas é uma tolice, porque tudo muda o tempo todo, querendo ou não.

Os quarks que o digam.[4]

As estrelas mostram isso.[5]

Vida que segue. Eu com minhas circunstâncias e você com as suas.[6]

É difícil, eu sei. Dá frio na barriga, mas quem disse que seria fácil?


[1] Manoel Wenceslau Leite de Barros [1916-2014] foi um poeta brasileiro do século XX.

[2] A expressão latina Res opinans significa “coisa que opina”, determinando que cada um vê a realidade de acordo com os “óculos” que possuem.

[3] As duas frases referem-se às canções de Lulu Santos e Raul Seixas, respectivamente.

[4] Quarks são as chamadas partículas que formam a base da matéria.

[5] Os astrônomos, há muito tempo, observam que a todo momento estrelas nascem e morrem.

[6] Eu e minhas circunstâncias é um empréstimo da expressão do filósofo espanhol José Ortega y Gasset. A expressão completa é: Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim.

Comentários

  1. Mas fiquei pensando q fica fácil explicar a mentira com a desculpa de q era só uma invenção...sendo q esta, realmente, passa por outros caminhos! E mesmo o viés do q percebemos como realidade, não pode se tornar verdade absoluta...não penso q neste caso seja invenção...mas, sim, percepçào! Outro lugar de fala...



    Ahhh, nào sou anônima, sou a Lica! Kkkkk

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

CORONAVÍRUS E A TRANSIÇÃO PLANETÁRIA

Depois da espanhola [1] e de outras piores, a humanidade saiu do mesmo jeito que sempre foi. E por que raios a saída dessa seria diferente? Vou explicar a razão. A ciência primeira hoje é o marketing. Por isso, muitas pessoas querem passar a imagem que o coração delas é lindo e que depois da epidemia, o mundo ficará lindo como elas. A utopia fala sempre do utópico e não do mundo real. É sempre uma projeção infantil da própria beleza narcísica de quem sonha com a utopia. Luiz Felipe Pondé – Folha de São Paulo – 13/04/2020 Por mais hedionda seja a figura de Joseph Goebbels [2] recentemente foi elevada ao status de máxima da sabedoria sua frase: “uma mentira contada muitas vezes acaba se tornando uma verdade”. É óbvio que se trata de uma armadilha, de um sofisma. No entanto, é plausível que se pense no poder dessa frase considerando como uma verdade baseando-se na receptividade do senso comum,   independentemente de cairmos no paradoxo de Eubulides ou de Epimênides [3] . ...

Tempus Fugit - Rubem Alves

O que me motivou a homenagear o "Seu" Ary imediatamente à sua morte, deve ter sido inspirado no texto que segue abaixo somado à gratidão guardada vivamente em minha alma. Não sei, mas posso ser punido por publicar crônica de autoria de Rubem Alves Tempus Fugit , Editora Paulus, 1990, mas valerá o risco. TEMPUS FUGIT Rubem Alves Eu tinha medo de dormir na casa do meu avô. Era um sobradão colonial enorme, longos corredores, escadarias, portas grossas e pesadas que rangiam, vidros coloridos nos caixilhos das janelas, pátios calçados com pedras antigas. De dia, tudo era luminoso, mas quando vinha a noite e as luzes se apagavam, tudo mergulhava no sono: pessoas, paredes, espaços. Menos o relógio. De dia, ele estava lá também. Só que era diferente. Manso, tocando o carrilhão a cada quarto de hora, ignorado pelas pessoas, absorvidas por suas rotinas. Acho que era porque durante o dia ele dormia. Seu pêndulo regular era seu coração que batia, seu ressonar e suas mús...

O INFERNO E A QUARENTENA

Há uma peça para teatro escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre intitulada “Huis Clos” mais conhecida entre nós pelo título “Entre Quatro Paredes” onde Sartre explora, entre outros, o tema da liberdade – tema tão caro ao pensamento desse filósofo. A peça é encenada em um apartamento que simboliza o Inferno onde três personagens interagem com a figura de um quarto – o criado. Não interessa aqui explorar a peça em todas as suas complexidades, mas de chamar a atenção para a fala do personagem Garcin que, ao fim da peça, exclama: “o Inferno são os outros”. Há quem diga – gente com repertório imensamente maior do que o meu -, que devemos entender que “os outros” não são o inferno, mas nós é que somos o inferno. [1] Esse tema traz muitas inquietações àqueles que pensam a vida de forma orgânica, não simplista. Meu palpite é que a frase de Garcin confirma para mim o que desconfio: que os outros são o inferno, porque o outro, a quem não posso me furtar da companh...

PAUSA PARA OUVIR - Chopin 2

Frédéric François Chopin 01/03/1810 - 17/10/1849 Piano Concerto No.1, Movimento 2 - Largo, Romance

A REDENÇÃO PELO SANGUE DE UM CAVALO

No último texto postado falei do “sangue de barata”. Desta vez, ofereço-lhes um texto o qual tive contato pelo meu filho Jonas no fim dos anos 90. A autoria é de Marco Frenette. Nele, Frenette fala do poder do sangue de um cavalo. Nota: o tamanho do texto foge do critério utilizado por mim neste espaço que é o de textos curtos para não cansar   a beleza de ninguém. CAVALOS E HOMENS Marco Frenette Revista Caros Amigos, setembro 1999. Essa short cut cabocla está há tempos cristalizada na memória coletiva de minha família, e me foi contada pela minha avó materna. Corria o ano de 1929 quando ela se casou, no interior de São Paulo, com o homem que viria a ser meu avô. Casou-se contra a vontade dos pais, que queriam para a filha alguém com posses compatíveis as da família, e não um homem calado, pobre e solitário, que vivia num casebre ladeado por uns míseros metros quadrados de terra. Minha avó, porém, que era quase uma criança a época, fez valer a força de sua pers...

A QUEIMA DO "EU"

Estimado Humberto, o feliz destaque "[...] o sofrimento, atributo indissociável deste mundo, é o processo natural da desidentificação do pensamento como “Eu”". Seria o sofrimento o método que desperta o cuidado com o outro e a compreensão dos limites do "eu"? Será que esta acepção resulta em comportamentos de alguns espíritas no sentido de prestigiar o sofrimento. De outro modo, quando alguém sofre e aceita aquele sofrimento e não luta para superá-lo, isto significaria a "[...] desidentificação do pensamento como “Eu”"? Não seria importante refletir sobre a importância da "[...] desidentificação do "eu"" atrelada à compreensão da "vontade de potência" (Der Wille zur Macht - referência a Nietzsche) como ferramenta da autossuperação e da dissolução da fantasia criada do "eu" controlador? Samuel Prezado irmão Samuel, obrigado pela sua companhia. É uma honra tê-lo aqui. Sem dúvida há uma relação entre Nietzsche e...

PAUSA PARA OUVIR - Rameau

Jean-Philippe Rameau 25/09/1683-12/09/1764 https://www.youtube.com/watch?v=fbd5OAAN64Y

BUSCA

Somos humanos, demasiadamente humanos [1] e nossa humanidade baseia-se na linguagem. Isso é evidente. Qualquer tipo de busca, por exemplo a “humildade”, está fadado à frustração. A busca pressupõe algo vindo da razão e esta tenta criar conceitos em tudo o que busca. A razão utiliza o artifício da comparação e os afetos não funcionam assim. Toda vez que me comparo com alguém, na verdade estou comparando algo que conheço pouco – eu mesmo, com algo que não conheço nada – o outro. Mas o conceito vem carregado de cultura, e a cultura é produto da linguagem, e a palavra é o tijolo da construção conceitual, nunca a coisa em si. Enquanto a razão busca a palavra “humildade” que é intenção, a vivência é o gesto. E sabemos, segundo Rui Guerra: há distância entre ambos. [2] . Enquanto a vida é vertiginosamente dinâmica – tudo que é agora, não será o mesmo no segundo seguinte, a palavra é a tentativa de manter-se aquilo que escapa por entre os dedos; é a esperança angustiada de eternizar-s...