Pilatos lavando as
mãos
Hendrick Jansz ter
Brugghen (1588-1629)
Nota necessária: Algumas pessoas me perguntam por que sou tão
implicante com o movimento espírita e seu desempenho. É porque ainda me
considero espírita – não no sentido estrito, mas em sentido amplo.
Tomo o cuidado de não fazer
críticas ad hominem, isto é, procuro não criticar pessoas, mas ideias.
Não raras vezes, sinto-me em
conflito por estar circunscrito apenas a um trabalho intelectual, enquanto
muitos valorosos irmãos trabalham e constroem grandes projetos de ajuda a inúmeros
desemparados.
Sempre olho para essa
distância e não perco de vista a vaidade e o orgulho que assombram minha alma
atravessada pelos pecados capitais.
No mais, se faço críticas,
não é no sentido de destruir o que quer que seja, mas com o fim de abrir
espaços de diálogo no cipoal dogmático em que se meteu irmãos queridos desse movimento
que tanto prezo.
O silêncio que se fez em
alguns momentos dentro dos espaços espíritas que frequentei é uma incógnita para
mim: não sei se de desaprovação, de desprezo ou de incompreensão, ou tudo isso
junto e misturado. Sigo sem saber se o que me espera é o reino de Hades, ou uma
mesa com ambrosia e néctar[1]. Desconfio
que seja o primeiro (risos).
Na melhor das hipóteses, na Antiga Grécia, eu seria classificado como um sofista menor[2]. Enfim, não me importo.
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Não tenho números que possam confirmar o que digo, mas há uma parcela de espíritas que fica numa espécie de bolha com Síndrome de Pilatos[3] distanciados de Jesus – aquele mesmo que foi preso, condenado e morto por ter se rebelado contra o poder de sua época.
Então, como podemos analisar esse grupo com o qual queremos lidar?
Há
uma parcela desse grupo que vive à margem dos acontecimentos políticos do Brasil desde quando
aqui foi fundado o primeiro centro espírita em 1865 na Bahia. Falar de política
ou políticas dentro de centros espíritas sempre foi considerado um passe para excomunhão
de quem se atrevesse a tocar nesses temas.
É uma contradição, porque o assistencialismo de forte expressão no meio espírita é uma ação política!
Se as pessoas estão na barriga da miséria, a resposta dada por esses companheiros é o de aumentar as atividades assistencialistas, buscando recursos e ampliando espaços de atendimento sem questionar a origem desse estado de coisas.
Línguas venenosas dirão que se trata da manutenção de um “exército industrial de reserva[4]” para alimentar e justificar a ação caridosa e consequente salvação. Onde não há pobres, não haverá ação caridosa do tipo mais fácil – dar o que sobra da sobra. Convenhamos, é muito pouco que se dá para, em troca, receber muito - a salvação (lembra um pouco a aposta de Blaise Pascal, não lembra?).
Outra parcela tem suas atividades políticas no dia a dia, mas cala-se diante das
calamidades, porque acredita que “sempre haverá pobres” e não se pode fazer
nada, porque se trata da distribuição feita pela vontade de Deus como consta em
O Evangelho Segundo o Espiritismo sobre a desigualdade das riquezas[5]
(ou de deuses como acreditavam os antigos em relação ao destino tecido pelas
moiras[6]).
O elemento condutor dessa fatia é o olhar piedoso e resignado diante do inevitável.
Ainda outra, é aquela, diferentemente das demais, que sabe que é possível uma ação direta sobre a realidade, mas como Pilatos, lava as mãos porque não possui voz no meio espírita.
Não
me canso de apontar que essa secura de debates dentro dos centros espíritas
faz com que esses centros não promovam debates de esclarecimento dos
problemas que enfrentamos. Nessa postura negacionista, esses centros tornam-se reprodutores da lógica neoliberal de manutenção e acirramento da desigualdade
e de multiplicação de mentes colonizadas pelo ideal meritocrático - cada
vez mais competitivo que engendra a marginalização, os privilégios, a violência. De um lado, assistimos ao aumento
exponencial de miseráveis e famintos; de outro, o estímulo agressivo do consumo
à classe média – que, curiosamente, é a classe com maior número de membros no movimento espírita
brasileiro.
Todo
esse comportamento é cozido e temperado por uma pedagogia aplicada nas casas espíritas, disfarçadamente
autoritária e alinhada ao estado atual que utiliza de uma linguagem afetada
cheia de clichês “cristãos” de submissão e falsa humildade.
Esse método pedagógico opressor nega a existência do conflito, evita-o, opõe-se ao confronto por
entender que se trata de características dos “espíritos inferiores”.
Pergunto
se o enfrentamento feito por Martin Luther King, ou a crítica dura de Jesus aos
doutores da lei de seu tempo, eram inspirados por espíritos inferiores?
Abro
parênteses para dizer que não significa que as pessoas que aplicam essa
pedagogia sejam desqualificadas, muito pelo contrário; são pessoas de boa
formação e bem situadas. A questão é como esses “professores/professoras” –
chamados nas casas espíritas de “instrutores/instrutoras” são formados para tal
tarefa. No meu entendimento, a mentalidade dessas pessoas de boa-fé e de grande
dedicação é colonizada por ideias e conceitos muito problemáticos e uma visão
da Doutrina Espírita bastante distorcida.
E é bom salientar que todos nós somos, de um jeito ou de outro, mentalmente colonizados. A questão é saber qual é a qualidade dessa colonização e o que temos para desenvolver a partir dela e o que devemos descolonizar. E não é apenas com fé em Deus que faremos esse trabalho. É com suor no rosto e mãos na enxada. Fecho parênteses.
É dessa pedagogia que aí está - que vem o cacoete de muitos líderes espíritas que se expressam com voz aveludada e gestos calculados em palestras chatas e sonolentas, reproduzindo falas moralistas e prometendo uma transição planetária com a qual a Terra será higienizada e livre dos desobedientes. Se dilúvios e pandemias da história não resolveram essa questão, será que outros dilúvios resolverão?
Enquanto isso, nossas mãos são lavadas, muitos de nós, como levitas[7], passamos ao largo sem mover uma palha sob o olhar de multidões sem esperança, estropiadas e famintas.
Como já diziam os antigos: “nove, entre dez Pôncios Pilatos, lavam as mãos com sabonete Lux”.[8]
Triste fim do serafim, como diz minha companheira.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Na Mitologia grega, o submundo dos mortos destinado às pessoas ruins era
governado por um deus chamado Hades. Na mesma Mitologia, os deuses do
Olimpo só se alimentavam por prazer e não por necessidade e essa alimentação
era composta por néctar e ambrosia – uma espécie de sobremesa, manjar, alimento
muito agradável servido aos deuses.
[2] Sofista: na Grécia antiga, os
sofistas eram considerados mestres da retórica e da oratória. Modernamente, são
aqueles que, lançando mão de habilidades retóricas, defendem argumentos
enganosos e inconsistentes.
[3] Síndrome de Pilatos, em África Insubmissa de Achille Mbembe. Segue
trecho abaixo:
Trecho do livro citado de autoria de Achille Mbembe – A
África Insubmissa
Neste trecho do livro, Mbembe discute a questão da colonização feita a partir da fé cristã europeia com fins hegemônicos aos múltiplos povos autóctones da África – o que não foi muito bem sucedida. Segundo o autor, depois da descolonização é um dever moral dos colonizadores, resgatar a cultura do respeito, da paz, da não violência autoritária, e do desenvolvimento daquele continente em nome da fonte de toda a inspiração do cristianismo – os ensinamentos de Jesus.
Síndrome de Pilatos
[...] Por conseguinte, pode argumentar-se que se o posicionamento dos capitais materiais e simbólicos do cristianismo deve ser sagaz, ou seja, assegurar ao último uma pertinência histórica, os aparelhos religiosos e as teologias que os seus agentes elaboram deverão definir-se perante o aumento das tensões internas. Têm de assumir uma posição, de uma forma ou de outra. Não se trata de fazer juízos precipitados sobre estas opções que nunca serão unívocas e negociarão sempre com os tempos e os lugares. Todavia, a crise considerável das economias africanas apela manifestamente a uma renovação do aparato da gestão do poder, da arte de governar e das condições de "ser-conjunto", tal como da necessidade, no caso dos autóctones, de se reposicionarem na sua própria história. Neste contexto, o contributo do cristianismo - na crítica e na desconstrução dos postulados culturais autoritários que constituem a base do sistema de pensamento que provocou a falência das independências - pode ser determinante. Sem que se tenha de chegar a um Estado teocrático, as igrejas intelectualmente criativas podem tornar-se parceiras incontornáveis na delimitação de um espaço de jogo propício a práticas que visam inverter o declínio atual. E isso será viável se os agentes religiosos que gerem o sagrado cristão em África deixarem de negar a linha de partilha entre a razão e a insensatez do Estado nas sociedades pós-coloniais? Poderão eles optar seriamente por esta via, evitando uma crítica teológica e um juízo ético dos sistemas de racionalidade subjacentes às práticas de terror que deturpam a imagem do indígena no mundo atual?
Sabe-se que, na maior parte dos países, e na lógica da coerção colonial, o poder funciona em modo carcerário. A própria ideia do partido único - tumor maligno dos regimes africanos - emana de uma lógica de pensa- mento que, teoricamente, rejeita qualquer diferença. Esta instituição envolve-se-entre muitas outras - em práticas de cura, no seio de uma economia da supremacia, na qual o poder tenta detectar de antemão a nocividade dos indivíduos. As diversas medidas ditas de "segurança", as práticas de deportação, a implementação de justiça de carácter especial, a execução pública dos oponentes, a mutilação dos seus corpos e a sua exposição em locais públicos, as práticas de humilhações (designada- mente, durante detenções e interrogatórios), as condições de internamento dos indivíduos, o seu encarceramento por conta, não só dos atos cometidos, mas também do seu "comportamento previsível", a repressão violenta dos motins nas prisões e todo esse terror provocaram situações desprovidas de qualquer direito, nas quais ninguém está protegido contra a arbitrariedade e a saúde mental e intelectual das sociedades está em risco. Acabados de sair das trevas da colonização, os indígenas foram atirados à força para o pesadelo destes espaços fechados nos quais instituições profilácticas suportam uma repressão preventiva, ao passo que a vigilância e o medo se desenvolvem nas inteligências e nos espíritos.
No prolongamento do espírito do colonialismo, o poder pós-colonial considera-se confrontado com sociedades perigosas e indivíduos em risco de se tornarem perigosos e que, por esse motivo, é necessário submeter a práticas de cura. Para dar hipótese às premissas de outra estrutura de pensamento e de atitudes de emergência e de desenvolvi- mento, o cristianismo não pode revelar os álibis que os poderes se autoatribuem e que abrangem a totalidade da sua atividade "normalizadora" nas sociedades indígenas. As teologias africanas que desculpabilizam o poder pós-colonial ou que exoneram a delinquência do Estado permitem-lhe aumentar os locais de vigilância e de punição, as práticas disciplinares que não toleram a emancipação do indivíduo africano e o seu reconhecimento enquanto sujeito de direito. "Evangelizados" com base na perspectiva dramática da maldição do negro, são levados a crer que o sofrimento histórico do indígena prepara rejubilações celestes. Ao relegar a salvação para a pós-história, legitima-se a ideia segundo a qual esta terra africana é uma terra de exílio e, enquanto tais, os acontecimentos que nela ocorrem podem ser tolerados. Deste modo, não se assume nem a ira e a desilusão inerentes as independências, nem esta espera angustiante por uma outra linguagem, sentido e prática do poder que caracteriza as novas gerações. Confinando-se a um sistema de enunciados que não questiona "o direito de matar" de que os regimes pós-coloniais tentam apropriar-se, a proposta cristã, em África, arrisca-se a ceder ao relativismo moral, colocando-se simultaneamente em situação de concubinato com o jogo de forças da supremacia que pesa sobre as sociedades indígenas. Assim, ela apoiaria e legitimaria o princípio autoritário e um exercício do poder que, pela sua própria natureza e no plano ético, está em estreita contradição com o motivo pelo qual viveu e morreu o Judeu da Galileia (da memória que ela reclama).
[4] Exército industrial de reserva
(desempregados) é um conceito desenvolvido por Karl Marx no qual a
competitividade por uma vaga de emprego alimenta a força de barganha dos
capitalistas em negociar com os trabalhadores. Já estive dos dois lados do
balcão e sei como esse mecanismo funciona no coração e nas mentes dos atores
desse processo, desumanizando-os.
[5] O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XVI, item 7.
[6] Moiras na Mitologia grega
eram 3 irmãs que determinavam o destino de homens e deuses tecendo fios que
representavam o começo, o meio e o fim da vida de cada um.
[7] Alusão a um dos personagens da Parábola do bom samaritano – cuja tribo
era dos Levitas, que ao ver uma pessoa machucada por agressões recebidas de
ladrões, não quis prestar ajuda e passou indiferente pela vítima.
Segue referência da Bíblia King James, em Lucas, 10, 25-37:
[1] Alusão a um dos
personagens da Parábola do bom samaritano – cuja tribo era dos Levitas, que ao
ver uma pessoa machucada por agressões recebidas de ladrões, não quis prestar
ajuda e passou indiferente pela vítima.
Segue referência da Bíblia King James, em Lucas, 10, 25-37:
25Certa vez, um advogado da Lei levantou-se com o propósito de submeter Jesus à prova e lhe indagou: “Mestre, o que preciso fazer para herdar a vida eterna?” 26Ao que Jesus lhe propôs: “O que está escrito na Lei? Como tu a interpretas?” 27E ele replicou: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e com toda a tua capacidade intelectual’ e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’”. 28Então, Jesus lhe afirmou: “Respondeste corretamente; faze isto e viverás”. 29Ele, no entanto, insistindo em justificar-se, questionou a Jesus: “Mas, quem é o meu próximo?”30Diante do que Jesus lhe responde assim: “Certo homem descia de Jerusalém para Jericó, quando veio a cair nas mãos de alguns assaltantes, os quais, depois de lhe roubarem tudo e o espancarem, fugiram, abandonando-o quase morto. 31Coincidentemente, descia um sacerdote pela mesma estrada. Assim que viu o homem, passou pelo outro lado. 32Do mesmo modo agiu um levita; quando chegou ao lugar, observando aquele homem, passou de largo. 33Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, assim que o viu, teve misericórdia dele. 34Então, aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Em seguida, colocou-o sobre seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele. 35No dia seguinte, deu dois denários ao hospedeiro e lhe recomendou: ‘Cuida deste homem, e, se alguma despesa tiverdes a mais, eu reembolsarei a ti quando voltar’. 36Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes? 37Declarou-lhe o advogado da Lei: “O que teve misericórdia para com ele!” Ao que Jesus lhe exortou: “Vai e procede tu de maneira semelhante”.
[8] Paráfrase anedótica do comercial do sabonete Lux que dizia: “nove entre
dez estrelas do cinema lavam as mãos com sabonete Luz.”
Nota: Devo essa ao meu
querido e saudoso mano Neno.
Na pluralidade moral e intelectual de seres encarnados muitos não querem assumir responsabilidade, sentem-se incomodados ao ter que lidar com a realidade nua e crua, e nada idílica. Por isso, "lavam as mãos" e se eximem de qualquer posicionamento de cidadania.
ResponderExcluirOutros há que tangidos pelas circunstâncias veem-se constrangidos a posicionarem-se socialmente, e divididos entre o que os outros vão falar e o que sinaliza a própria consciência, poupam-se em fazer alguma coisa, contanto que não saia do imprevisível. "Lavam as pontas dos dedos" cumprindo uma etiqueta convencional.
E por fim há os que se dirigem aos desafortunados procurando devolver-lhes a dignidade, a serem reintegrados na sociedade, como por exemplo, a "ONG SP Invisível", que transforma a vida de pessoas de rua através de conscientização social. "Lavam os pés" dessas pessoas vulneráveis que readquirem a auto estima, e trabalho.
Se as utopias fazem a humanidade avançar, possa a dos "6 grandes A" se concretizar: que todos tenham acesso ao ar, água, alimento, agasalho, abrigo e amor.