“Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos e soubessem desenhar... os cavalos desenhariam figuras de deuses semelhantes a cavalos, os bois semelhantes a bois."
Xenófanes
(570-475 a.C.)
Quem leu o livro “A Águia e a Galinha”
(Editora Vozes Nobilis) de Leonardo Boff*, sentiu o peso da escrita
desse grande e respeitado intelectual; sua veia poética e o lirismo dessa
história por ele contada – a fábula não é de sua autoria[1],
mas ele a desenvolve na citada obra.
*Para
quem não leu a fábula, segue depois das notas de rodapé a íntegra do texto.
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É inegável o valor que ela traz como incentivo
àqueles que se sentem oprimidos neste nosso mundo; ou que foram condicionados a
pensar de modo limitado.
De fato, trazemos potenciais os quais pouco ou
nada sabemos e que pela contínua desvalorização de uns pelos outros – nessa
máquina de moer gente configurada na competitividade capitalista predatória -
vamos introjetando um sentimento bastante depreciativo de nós mesmos.
Não darei spoiler[2]
ao comentar o argumento ali colocado.
Ouso, contudo, apontar algum incômodo que
sinto no argumento:
1)
A
supervalorização do ser humano como alguém criado à imagem e semelhança de
Deus. Como se o resto da criação não fosse. Isto é o que hoje chamam de
“especismo”[3].
Essa concepção especista de Deus mostra a antropomorfização[4] de
Deus pelo homem.
2)
Na fábula – não
na obra de Boff – há uma clara depreciação das galinhas em relação às águias.
Há que se pensar no papel que cada ser representa no Cosmos.
Para mim, do ponto de vista cósmico,
um ser humano não é mais importante que as bactérias que vivem em seu intestino,
porque sem a presença delas nenhum ser humano sobreviveria.
É por isso que a sabedoria judaica
aponta:
Os místicos contemplavam um verme e percebiam que na
questão da existência não tem sentido qualquer hierarquia na cadeia evolutiva.
O verme, mesmo com sua falta de sofisticação diante da complexidade de um
humano, ainda assim pode ser capaz de se fazer verme melhor do que o homem pode
se fazer homem. Esse cumprir de si é tão legítimo quanto for capaz de produzir
bem-estar, independentemente de qualquer hierarquia biológica. Cumprir-se e
apropriar-se determina a qualidade do ser.
Nilton Bonder, Ter ou Não ter, eis a questão! Editora
Campus, 2006, página 130.
3)
A fábula induz à
comparação entre seres de diferentes espécies. Aprendi que qualquer comparação
entre mim e o outro é um baixo nível do pensar.
Toda vez que me comparo, faço-o para
me situar acima de alguém – uma tolice de dimensão cósmica; abaixo de alguém –
uma tolice de dimensão psicológica-cognitiva. Enfim, a comparação é uma
desgraça na economia da alma: é fonte geradora de inveja, ciúme, orgulho,
egoísmo, ressentimento e todas as mazelas humanas espalhadas por aí.
4)
A pergunta que
passa pelo meu pensamento toda vez que esbarro nessa fábula: alguém – próximo
de você - que estivesse doente, acamado, tomaria um caldo de águia? Comeria,
com facilidade, uma omelete feita de ovos de águia para recuperar energias?
Galinhas são depreciadas até quando
expressamos frustração por um projeto malsucedido ao dizermos: “esse projeto
foi um voo de galinha”.
Entretanto, a galinha, na sua aparente obscuridade,
cumpre, plenamente, o seu papel mesmo não tendo a capacidade de voar da águia.
O voo da águia é belo e inspirador, mas a galinha, apesar do voo curto, é tão importante quanto a águia.[5]
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1]
Consta que essa fábula é de autoria do educador
James Aggrey (1875-1927).
[2]
Spoiler: informação que revela partes importantes do
enredo de um filme, série televisiva ou de um livro, sobretudo para quem ainda
não os viu ou leu.
[3]
Especismo: ideia de que uma espécie, no caso a humana, é
superior às demais podendo explorá-las como bem entender e sem culpa,
responsabilidade ou dever de respeitá-las e protege-las. Vide a caça esportiva,
por exemplo, não raro predatória. Sobre esse assunto, sugiro a leitura da obra
do filósofo Peter Singer.
[4]
A tradição judaico-cristã deu forma e
características humanas a Deus. Este fenômeno da linguagem chama-se antropomorfização. Infelizmente, essa caracterização de Deus está
presente nas bases da Doutrina Espírita.
[5]
Eu evito, ao máximo, o consumo de carne de
aves. Tendo a deixar de consumir qualquer tipo de proteína animal. Não é porque
quero atingir a angelitude, mas por posicionamento político.
A HISTÓRIA DA ÁGUIA E A GALINHA
Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas.
Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista:
– Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia
– De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão.
– Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas.
– Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia.
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse:
– Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe!
A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas.
O camponês comentou:
– Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha!
– Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã.
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe:
– Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe!
Mas quando a águia viu lá embaixo as galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas.
O camponês sorriu e voltou à graça:
– Eu lhe havia dito, ela virou galinha!
– Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar.
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas.
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe:- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe! A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidão do horizonte. Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez mais para o alto. Voou… voou… até confundir-se com o azul do firmamento…”
Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas há pessoas que nos fazem pensar como galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, abramos as asas e voemos. Voemos como águias. Cada pessoa tem dentro de si uma águia. Ela quer nascer. Sente o chamado das alturas. Busca o sol. Por isso somos constantemente desafiados a libertar a águia que nos habita. Sejamos águias em nossas vidas e não galinhas!
E você, já se preparou para alçar seus voos?
Em relação aos nossos irmãos 'menores': todos têm o seu valor.
ResponderExcluirE o modo como um indivíduo trata os animais diz muito sobre si.
Relativamente aos nossos irmãos, em humanidade: aceitar a singularidade de cada criatura é um desafio ainda a ser vivenciado.
Enxergar o potencial de que cada ser é dotado depende do conhecimento da própria natureza espiritual.
No piar de uma águia ou
no cacarejo de uma galinha,
no soluço de uma dor ou
na risada de um amor
cada qual manifesta a essência divina imanente e inteligente.
E todos em processo de existir na Vida. Soberana.
Há escritores consagrados para os quais dedico algum tempo em ler suas crônicas, menos pelo atrativo que me desperta e mais pela esperança de descobrir, numa dessas leituras, algo menos maçante. Para sintetizar, digo que um Leandro Karnal, por exemplo, está para a galinha como o meu amigo e irmão Humberto está para a águia. Pelo menos para o meu gosto pessoal de leitura.
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