Desenhando mãos - 1948
Maurits Cornelis Escher (1898-1972)
(...) Tal como Chuang-tsé, ele
sonha ser uma borboleta e ao acordar pergunta-se se foi ele que sonhou ser uma
borboleta ou se foi a borboleta que sonhou ser Chuang-Tsé. O mundo é um
edifício irreal construído de sonhos nos quais os seres sonhados dão origem ao
sonhador, tal como as mãos de Escher se desenham uma à outra para poder
desenhar.
Mircea Eliade e Ioan P. Couliano – Dicionário das Religiões –
verbete Taoísmo.
++++++++++++++++++++++++++++
É um enorme desafio para um ocidental deparar-se com o pensamento
oriental, especialmente o Taoísmo que vai muito além do corredor estreito da
visão de mundo lógica, cartesiana, racionalista - característica daquela
mentalidade que se acredita depositária da verdade.
Esse é o pensamento dominante nas linhas da Doutrina Espírita
com o qual, alguns, operam de maneira quase dogmática, com tempero positivista[1].
Pensando assim, seria como se eles negassem a existência da antimatéria. Falam
da existência do mundo material e do mundo espiritual com pompa e circunstância,
mas sem considerar que o espírito, por definição é um constructo mental sem
comprovação epistemológica possível.[2]
A falta de profundidade na observação da realidade total, somada à
arrogância de quem se sente portador do saber definitivo. A concepção do vazio
no Taoísmo mostra o contrário, porque o vazio é sem fim e é ele que dá
consistência ao que é finito – pelo menos é a maneira como entendo o Tao Te
King neste trecho:
O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.
Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas lhes dá utilidade...
Lao Tsé, Tao Te King
Para essa gente – e sejamos justos, para a maioria de nós - é
difícil entender que o que é preenchido (a realidade observada) depende
estruturalmente do vazio impreenchível.[3]
O convite feito por Krishnamurti é oportuno. Diz ele que para
que tenhamos grande capacidade de percepção da realidade, temos de ouvir o
badalar do sino como também o silêncio entre um badalar e outro.
O “silêncio” entre o som de uma badalada do sino e outra
badalada equivale ao “oco do vaso”.
Nem sempre o real é óbvio.
É muito complicado para quem foi condicionado a pensar sob
uma lógica cartesiana (como os ocidentais em geral o fazem) em conceber a
existência concomitante e paradoxal do eu e o não-eu. Para mim,
uma variante daquilo que, no Taoísmo, configura o princípio da mutabilidade: o não-agir
para agir.
Tá difícil? Pois é, no começo é difícil mesmo; com o tempo e
com estudo a gente acaba entendendo, ou pelo menos, vai se acostumando.
Apesar de ser um iniciado no Taoísmo, ainda fico boiando em
muitas questões postas tanto por essa corrente de pensamento quanto pelo Zen-budismo
que admiro muito.
Essa visão ocidental - particularista e reducionista - que tenta ter uma compreensão analítica da realidade –
comumente, não consegue entender a visão oriental que tende a ver a realidade
por síntese e não por análise. Isso cria uma reação paradoxal de desconfiança
da própria existência: será que existo como eu penso que existo, como o fez Chuang-Tsé?
(Não custa lembrar que, no Taoísmo, a simplicidade é o último
degrau da sabedoria.)
O velho e bom Heisenberg[4]
entra em cena com o seu Princípio da Incerteza, isto é, não podemos nos
orgulhar de sermos tão sabidos assim. Há outras maneiras interessantes e
esclarecedoras de ver a realidade que somos e aquela que nos cerca.[5]
De resto, é sempre bom termos em mente a citação do
Eclesiastes: vaidade de vaidades, tudo é vaidade.
Nota final: Em seu livro “Adeus à Razão” Paul Karl Feyerabend* desafia os grandes dogmas do mundo contemporâneo para defender os benefícios da diversidade e das mudanças culturais diante das certezas uniformes e homogeneizantes da tradicional racionalidade científica. Aproxima Ciência e Arte e discute desde Xenófanes a Einstein e a mecânica quântica, passando por uma análise surpreendente do conflito entre Galileu e a Igreja. O seu (tipicamente) agressivo “adeus à razão” equivale à rejeição de uma imagem congelada e distorcida da ciência que abusa do cânon ocidental racionalista e objetivo. (Fonte: contracapa do livro, Editora Unesp).
*Feyerabend (1924-1994) foi filósofo da ciência austríaco.
Vale a reflexão.
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1]
O Positivismo é
uma corrente filosófica que surgiu na França, no século XIX. Afirma que o
conhecimento científico seria a única maneira de conhecimento verdadeiro.
[2] Não falo isso à toa.
Baseio-me no próprio livro-base da Doutrina Espírita – O Livro dos Espíritos –
que na questão 23 diz o seguinte:
23a) — Qual a natureza íntima
do espírito?
Não é fácil analisar o espírito com a vossa
linguagem. Para vós, ele nada é, por não ser palpável. Para nós, entretanto, é
alguma coisa. Ficai sabendo: coisa nenhuma é o nada e o nada não existe.
Não quero discutir aqui essa
questão, mas para uma mente treinada a pensar dualmente, é complicado pensar
que “nada não existe”. Porque, se o tudo existe, o nada também deverá existir.
Pelo menos conceitualmente.
[3]
Sugiro o
documentário produzido em 2010 chamado Tudo e nada – a ciência surpreendente
do espaço vazio apresentado pelo físico Jim Al-Khalili. Link abaixo.
[4]
Werner Karl
Heisenberg
(1901-1976) foi um físico teórico alemão que recebeu o Nobel de Física de 1932 pela
criação da mecânica quântica. É muito conhecido no meio científico o seu “Princípio
da Incerteza”. Heisenberg gostava de aproximar a visão ocidental da filosofia
oriental.
[5]
Ver litogravura
de Escher “Três mundos” de 1955. Link abaixo
https://pt.wahooart.com/@@/5ZKD77-Maurits-Cornelis-Escher-tr%C3%AAs-mundos-,-1955
A vida é um caleidoscópio, pois comporta mundividências diversas:
ResponderExcluirLembrei deste aforismo de Heráclito: "O caminho a subir e a descer é um e o mesmo”.
O que me fez pensar no fluxo contínuo da passagem do ar, entre o inspirar e o expirar.
Depois recordei da afirmação do Mozart: "A música não está nas notas, mas no silêncio entre elas."
Com isso, e outros pontos de vista, considero que somos constituídos de consciências pensantes inseridas na matéria.
Esta é a minha ('uma') visão das ('duas') realidades.
De início, você deixa bem claro que o conhecimento oriental supera o ocidental, com destaque para o Taoísmo. O fato de não ser possível uma comprovação epistemológica do espírito abala os alicerces da Doutrina Espírita ou de parte dela? É a minha dúvida.
ResponderExcluirA citação de um pensamento de Lao Tsé sobre o vazio é de uma beleza e profundidade indescritíveis. Julgo oportuno mencionar Hermann Hesse que em seu “Minha fé”, o considera o maior sábio da China. E acrescenta: “... o último estudioso alemão dessa doutrina (além de professor de teologia) colocou Lao Tse em paralelo com Cristo.
Como você mesmo diz, é muito complexo entender o profundo pensamento oriental para quem está condicionado à lógica cartesiana. Considere ser normal o iniciado “boiar” em questões do Taoísmo, pois o próprio Hesse escreveu sobre o grande filósofo: “ ... sua obra fala uma linguagem pesada e estranha, que só pode ser abordada com muita dedicação e verdadeiro esforço”.
Finalmente, quero deixar claro que sou um grande apreciador das filosofias orientais, e gostaria de aprender com esses sábios chineses, de Lao Tsé a Confúcio. Por enquanto, meu irmão, vá me ensinando alguma coisa.