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SHIVA E A DISCÓRDIA

Eu só poderia crer num deus que soubesse dançar.

Friedrich Nietzsche (1844-1900)

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Alguém pode pensar que estou delirando ao dizer que há uma relação entre Shiva – um dos deuses supremos do hinduísmo – e a discórdia. Explico:

Não foi o próprio deus que causou discórdia dentro do centro espírita que eu frequentava no papel de “instrutor”, mas foi por causa de uma aula que preparei sobre Shiva que redundou na minha demissão daquela função.

Estava em minha sala com a turma que me acompanhava nas aulas do curso “avançado” de O Livro dos Espíritos e decidi montar uma apresentação em PowerPoint para conversarmos sobre a simbologia por trás da figura enigmática do deus dançante.

Havia na porta da sala uma abertura com um vidro que possibilitava, às pessoas que passavam pelo corredor, verem o que ocorria no ambiente da aula.

Naquela noite de quinta-feira, passou um antigo e importante colaborador da Casa e parou para sondar o que aquele “maluco” estava fazendo numa aula de doutrina espírita. Não deu outra: a supervisora dos cursos me chamou – utilizou a clássica técnica do sanduíche[1] – e me pediu que me afastasse da função de “instrutor”.

Pedi a ela que organizasse uma reunião com o detrator, ela e demais membros da diretoria para uma conversa de modo que eu pudesse explicar qual a finalidade de utilizar aquela “estranha imagem” e seu profundo e belíssimo significado e qual a ponte que ligava o Espiritismo ao Hinduísmo[2].

Percebi o constrangimento dela ao dizer que admirava o meu trabalho, mas que a diretoria da Casa havia decidido por esse caminho de modo irrevogável.

A turma que me acompanhava seguiu comigo em reuniões fora dali em local alugado por nós e que resultou neste Blog. Vida que segue...

É claro que esse episódio continuou rondando o meu pensamento, mais pelo fato de ver para onde o movimento espírita brasileiro está caminhando, um pouco menos pela ofensa à inteligência.

Eu não exagero ao pegar o exemplo de uma Casa e ampliar para uma enorme fatia do movimento espírita, porque passei por outras casas que, com o mesmo mal-estar, trataram de forma semelhante o desafio de verificar como funcionam outras visões de mundo pelas lentes da doutrina espírita, muito além da seita fundamentalista[3] que se desenvolve, como metástase, dentro daquilo que Kardec sonhou ser uma “Filosofia Espiritualista”.

Eu queria e quero entender esse processo, sem apontar maldosamente o dedo para ninguém. São irmãos meus que podem estar equivocados assim como eu também posso - sou Res opinans[4]. São pontos de vista. A doutrina espírita é entendida por essa gente como ponto de chegada e eu a entendo numa chave oposta: como ponto de partida; para mim, e se eu não estiver enganado, para Kardec, a doutrina espírita é questão aberta sem pretensão de conclusão. Se houvesse conclusão, ela estaria no infinito.

No fim desse processo, falou alto o meu orgulho ferido e meu ressentimento elaborado no seguinte pensamento:

É gente amarga a qual tem pouca intimidade com o “Amor fati”[5] do Estoicismo, de Nietzsche e de Camus. Gente tão amarga que não sabe dançar e tem raiva de quem sabe, como no caso do deus Shiva – o deus dançarino.

Enfim, gente que não entende que o Universo também dança[6].

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Técnica do Sanduíche: Aprendi essa técnica quando lidava com administração de empresa. Consiste em chamar a atenção de alguém utilizando-se os seguintes passos: primeiro: faço elogios à pessoa (uma parte do pão); segundo:  dou a bronca (o recheio); por último faço outros elogios (a outra parte do pão que completa o sanduíche). Resultado: dou a bronca e a pessoa ouve e sai satisfeita porque a elogiei mais do que a critiquei. Por mais “ardida” que seja a bronca, o efeito psicológico criado pelo elogio dado por último traz uma sensação de bem-estar. Qualquer chefe que possua mais de dois neurônios sabe que funciona melhor do que pisar e maltratar quem lhe serve. Depois de tantos anos, percebo que esta técnica pode ter efeito reverso quando o advertido sabe tratar-se de um ardil.

[2] No Hinduísmo, o deus Shiva é tratado como o deus “destruidor e regenerador”. Entre muitos outros significados há uma fina ligação com as Leis Morais de Reprodução, Conservação e Destruição contidas em O Livro dos Espíritos de Allan Kardec.

[3] Fundamentalismo (no sentido negativo) é um movimento ou uma corrente de pensamento, que prega obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios fundamentais.

[4] Res opinans em latim significa “coisa que opina”.

[5] Amor fati pode ser entendido pela aceitação integral da vida e do que aí está posto.

[6] Referência ao livro A Dança do Universo do astrofísico brasileiro Marcelo Gleiser.


Comentários

  1. Esse é o problema de muitas religiões (ou todas...), ou você pensa como eu prego ou você não serve. Antes de tentar entender o porque da utilização do Shiva na aula, preferiu descartar o instrutor que tinha pensamentos diferentes.

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  2. Quando se faz um recorte de uma cena sem considerar a abrangência, o contexto e a finalidade, corre-se o risco inevitável do julgamento inequívoco.

    Penso ser válido se pautar na máxima de Paulo: “Examinai tudo. Retende o bem”  - 1 Tessalonicenses 5:21.

    Examinar tem o sentido de investigar, inspecionar de maneira atenta e minuciosa.

    Nada como um salutar exercício de humildade aprender a ouvir, depois conhecer (estudar) e então dialogar (troca de ideias). Assim cria-se pontes e não muros.

    Enfim, sigamos a melodia da intuição.

    "E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música." (desconhecido)

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