Junho/2022.
Enquanto escrevo, ouço Impromptu No. 3 em Sol bemol maior,
Op. 90 D. 899 de Franz Schubert com interpretação da magnífica Khatia
Buniatishvili. (link abaixo):
Ouço essa peça frequentemente. Causa em mim uma sensação tal que comparo àquilo que Romain Rolland chamou de sentimento oceânico[1], ou seja, uma espécie de febre mística que nocauteia afetos tristes que ainda carrego.
Penso que, quando essa pianista toca, as notas circulam em
suas veias como se fossem se ligando ao oxigênio recolhido pelas hemácias[2],
ao mesmo tempo roubando de nós esse gás precioso fazendo com que nossa
respiração fique suspensa.
Assim como Chopin – que morreu de tuberculose aos 31 anos –
Schubert também morreu novo para os padrões atuais – morreu aos 39 anos,
segundo algumas fontes, de febre tifoide.
Mozart também faz parte desse time: morreu aos 35 anos de
grave inflamação dos rins provocada por uma simples amigdalite possivelmente
bacteriana.[3]
Se esses músicos vivessem no século XXI, certamente não
teriam morrido dessas doenças, hoje tidas como banais para a Medicina.
E é aí que engancho o título deste texto.
Hoje em dia nem percebemos o peso da Ciência opondo-se àquilo
que em Biologia chama-se Seleção Natural – a natureza seleciona os mais
fortes e descarta os mais fracos sem a menor cerimônia. Se não fosse por essa
intervenção da Medicina, certamente eu não estaria escrevendo essas linhas: no
meu currículo constam dois cânceres, sem contar dois episódios de pneumonia e
um sem-número de amigdalites na infância. Mas o pulso ainda pulsa.[4]
Ah! O que é a irônica assimetria do tempo: sempre fui medíocre
como aprendiz musical – bem que meus professores esforçaram-se bastante, em vão
(risos). Em compensação, nasci num tempo em que as mulheres já não morriam de febre
puerperal; o antibiótico já tinha sido inventado; a assepsia era uma regra
muito rígida nos hospitais e as técnicas cirúrgicas alcançaram patamares
milagrosos, por esta razão cheguei aos 71 anos. Já Mozart, Chopin e Schubert
não tiveram a mesma sorte. Quanto teriam produzido se tivessem alcançado a
minha faixa etária!
As comparações, frequentemente, demonstram baixo nível do pensamento de quem as faz; por esta razão evito-as ao máximo. Contudo, em algumas ocasiões, dada a minha estatura espiritual, não consigo evitá-las.
Também, não quero discutir gosto musical, já tive muitos arranca-rabos
por conta de minha beatlemania. Coisa do passado. Além disso, as vidas de
funkeiros que, como eu, foram e serão salvas pela medicina não devem fazer
parte de minha tristeza em saber que Mozart, Chopin e Schubert não gozaram
dessa benesse a que os funkeiros certamente gozam. A vida tem valor absoluto,
seja de quem for. Além do mais, o coração que pulsa no peito de um funkeiro pode ter mais nobreza do que um artista clássico.
Hoje, o ouvido que gosta de música clássica é quase um
aristocrata. Hoje, funkeiros fazem mais sucesso do que artistas do mundo musical
clássico, bem como do popular de repertório sofisticado, estes têm um público bem
mais reduzido que aqueles. Zeitgeist![5]
É importante salientar gosto musical não implica em hierarquia
espiritual como poderia inferir o senso comum. Pessoas que gostam de funk
seriam espíritos "inferiores" às que gostam de clássicos. Uma tolice.
Não podemos deixar de lembrar que comandantes nazistas de
campos de extermínio, à noite, em suas casas, chegavam às lágrimas ao ouvir
clássicos como esta peça de Schubert. Não será o gosto musical que moldará o caráter das pessoas. Em outras palavras, gosto musical não deve ser régua para medir o grau espiritual de ninguém.
Contudo, cabe a pergunta: daqui a 50 anos, exceção feita aos
historiadores, alguém lembrará de algum sucesso do mundo funk de nossos dias?
Difícil? Quem disse que seria fácil?
[1] Sentimento oceânico: Em uma carta de 1927 a Sigmund Freud, Romain Rolland cunhou a frase "sentimento oceânico" para se referir a "uma sensação de 'eternidade', um sentimento de "ser um com o mundo externo como um todo".
[2] A principal função das células do sangue, entre outras, as chamadas hemácias, é a troca gasosa entre dióxido de carbono e o oxigênio.
[3]https://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL1272318-16020,00-CIENTISTAS+DESCOBREM+A+CAUSA+DE+MORTE+DE+MOZART.html
[4] Alusão à canção dos
Titãs “O Pulso”.
[5]
Conceito que, em
alemão, significa “sinal do tempo” ou “espírito da época” criado por Johann
Gottfried
Herder, porém o termo
ficou mais conhecido pela obra de Hegel.
A tristeza é uma ponte para o coração. Hoje em dia a felicidade parece uma ordem. Talvez isso explique o sucesso do funk, sertanejo... Parece que lidar com emoções é proibitivo. Eu sigo a vida contemplando pores do sol e Schubert e chorinho e bossa nova e ambiciono beber café e ter boa prosa todos os dias. Que a ciência e o divino nos ajude! Um abraço!
ResponderExcluirTexto muito articulado, Humberto! Também penso no cuidado de uma relação apressada entre causa e efeito que, em muitos casos, não expressa causalidade alguma, apenas algum hábito ou preconceito! Sigamos apreciando a arte e alimentando a alma!
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