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JESUS E O CRISTO

Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por Mim” (João 14:6)

Essa passagem no evangelho de João sempre me intrigou.

E se formos ao Livro dos Espíritos, na questão 625, vamos perceber uma possível contradição.

625. Qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo?

Resposta: “Jesus.”

É curioso notar que na edição francesa conduzida pelo próprio Kardec, a resposta aparece ligeiramente diferente:

625. Quel est le type le plus parfait que Dieu ait offert à l'homme pour lui servir de guide et de modèle ?

Resposta:> « Voyez Jésus. »

Há, portanto, uma diferença entre “vede Jesus” e apenas “Jesus”.

Enquanto na resposta reducionista “Jesus”, em algumas edições em português, põe Jesus na posição de alguém único, absoluto; na resposta com o verbo “vede” (vouyez) os espíritos pedem para haver uma ação de nossa parte em “observar Jesus”. Observar alguém não significa, necessariamente, imitá-lo; seguir literalmente o seu exemplo, mas algo plausível, mais próximo de nossa capacidade, e exige um trabalho cognitivo consciente, de escolha e não cego.

Sendo Jesus um modelo de virtude, segundo os espíritos, não é possível associá-lo à sua fala contida no evangelho de João, porque lá ele diz ser O caminho, A verdade e A vida e, na sequência, complementa: “ninguém vai ao Pai senão por mim”. Literalmente Jesus está dizendo que é o único caminho para chegar a Deus! Os artigos definidos suportam essa interpretação. E se eu estiver certo, não sei, isso seria um exemplo claro de vaidade! Se assim fosse, nesse passo do evangelho, Jesus se aproximaria de Lúcifer – o anjo magnífico e vaidoso que desafiou Deus. O que teologicamente é uma contradição.

Além disso, Jesus estaria dizendo que todos os futuros não-cristãos, não teriam a menor chance de “chegarem a Deus”! O que é, no mínimo, um paradoxo; uma contradição.

O Cristo dos cristãos é fragmentado. Ele é parte da Divindade. Seu papel cobre um terço do  Universo ou, se quiser, da realidade total[1] (não estou sendo irônico).

Para contornar o mal-estar causado pela suposta arrogância de Jesus em se referir a si como o único caminho possível para Deus, e em clara contradição à definição dada pelos espíritos a Kardec, minha tendência é separar os termos “Jesus” e “Cristo”: Jesus como um homem judeu, nascido na Palestina e que impactou a cultura ocidental, etc., etc.; e o “Cristo” como potencialidade que existe em cada um de nós. Cristo seria a qualidade de alguém individuado, pronto e acabado como se fosse a enteléquia aristotélica[2], potência que se tornou ato (pelo menos ao nível humano).

Somente dessa maneira posso me sentir confortável com a frase intrigante a que me referi no início dessa conversa, ou seja, aquilo que Jesus tivera em potência, tornou-se ato, atualizou-se na figura de Cristo. Então, eu, você, eles, todos nós também possuímos, em potência, o Cristo e vamos transformando em ato ao longo do calendário cósmico.

Não me nego a ideia de que ainda sou uma semente de laranja – e é desejável ter essa visão mais aguda possível do próprio tamanho, contudo não duvido que eu seja potencialmente um laranjal inteiro[3]! Aos poucos vou saindo da fragmentação, da ignorância, e o meu devir[4] aponta para a condição de me tornar superconsciente, individuado, autor-de-si, algo a que Jesus se referiu, de maneira subliminar, ao responder à pergunta feita pelo governador da Palestina[5] -; em síntese o Cristo.

Dessa forma posso dizer que eu, também, sou o Caminho, a Verdade e a Vida, porque vivo, e vivendo vou me conhecendo melhor; e me conhecendo melhor vou descobrindo a Verdade à medida que caminho em direção a esse telos[6] - estado “crístico” em que Jesus, em tese, já chegou.

Talvez, pelo exposto, Jesus tenha dito aos seus discípulos – e por extensão a todos nós -, que tudo o que ele fazia poderíamos fazer, também[7].

Difícil? Quem disse que seria fácil?


[1] Alusão à Santíssima Trindade.

[2] Para Aristóteles, algo ou alguém que atingiu o seu ponto de perfeição.

[3] Ninguém duvida que em uma semente de laranja exista um laranjal inteiro.

[4] Devir: Processo de mudanças efetivas pelas quais todo ser passa.

[5] Referência à resposta dada por Jesus à Pilatos quando perguntara-lhe “se ele – Jesus – era rei”. A resposta foi: “meu Reino não é deste mundo”. A interpretação comum é de que Jesus referia-se ao mundo espiritual, o mundo pós-morte. Divirjo dessa interpretação. Jesus falara de seu mundo interior no qual reinava; e reinava porque chegara ao estado de individuação, à autoria de-si-mesmo, ao Self em linguagem junguiana.

[6] Telos: fim supremo do esforço humano.

[7] Em verdade, em verdade vos digo: aquele que crê em mim, esse também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas... (João, 14:12). 

Comentários

  1. Texto claro, preciso. Uma grande reflexão

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  2. Amigo Humberto, permita-me pensar com você. Em primeiro lugar, considerar a posição "Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por Mim” como verdadeira é um risco pelas razões que você apresentou e adiciono um problema. Não há registro de escrito de Jesus. O que se tem notícia seria registro dos discípulos, neste caso em particular de João, então, questiono: será que Jesus disse mesmo o que relatou João? Aceitar de forma acrítica os ensinamentos pela relevância pretendida parece ser um problema que torna o posicionamento dogmático. Se Jesus nada escreveu, da mesma forma que Sócrates, o filósofo, não o jogador, então, será que disse o que se diz que disse? No caso de Sócrates, será que Platão ou Xenofontes podem ter forjado a vida de Sócrates e os Diálogos socráticos? No caso de Jesus, será que foram os discípulos que forjaram a vida e experimentos do mestre e Jesus nem existiu? Algumas pessoas não toleram questionamentos assim, mas aqui é Espiritismo Debatido, não é mesmo? Abraços!

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  3. Jesus, um modelo, um guia. ("para si")
    Cristo, uma condição sine qua non a se atingir. ("em si").

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