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A VIDA PELO RETROVISOR

 

Persistência da Memória – Salvador Dali (1904-1989)

A vida pode ser comparada a uma estrada na qual estou conduzindo um veículo – o meu corpo, por exemplo, que representa o repositório de todas as experiências sentidas e vividas ao longo do caminho.

Metaforicamente, conduzo esse corpo como um automóvel em trânsito intenso – porque a vida é intensa, querendo ou não.

Para dirigir bem, preciso constantemente ter a atenção no que acontece à minha frente, porém, e não menos importante, preciso verificar sempre o que ocorre atrás. Para isso, tenho de olhar para o espelho retrovisor inúmeras vezes (por minuto) enquanto dirijo: uma curva fechada, uma barreira, a falta de seta para fazer uma conversão, alguém que parou de repente à minha frente podem ser sinais de perigo – a energia cinética é cega e implacável.[1]

Na vida, as coisas se passam mais ou menos assim: alguns dirigem mais lentamente e de forma cuidadosa, enquanto outros estão com muita pressa de chegar (Onde? Não se sabe ao certo); outros distraem-se, dormem; outros ainda dirigem embriagados.

O condutor que não equilibrar sua atenção entre o que ocorre à sua frente e o que acontece atrás, poderá causar acidentes graves e fatais.

Além disso, existe o ponto cego – aquele ponto onde não se tem visibilidade externa e que solicita atenção dobrada tanto visual quanto sonora. Isso sem falar nos momentos em que estou debaixo de tempestade à noite em estrada não muito bem pavimentada e sinalização sofrível. A vida é esse desafio, somos filhos da contingência.

A metáfora é cabível, porque aponta para algo muito importante na busca de uma vida boa: não posso deixar de olhar para o passado com seus erros e acertos – funciona como bússola; como não posso deixar de me perguntar, constantemente, para onde quero ir ou chegar, o que demanda um caminho previamente traçado.

O problema é que a vida – como dizia Millôr Fernandes – é um desenhar sem borracha. O que está feito, está feito. Vivo no presente contínuo no qual o passado cruza com o futuro de forma vertiginosa. A dinâmica da vida não permite que eu me banhe no mesmo rio duas vezes[2].

Neste passo é bom lembrar do ensino do Buda que indica o “caminho do meio” como fonte de sabedoria: não olhar só para a frente – preocupado com o futuro; nem olhar somente para trás fixado no passado, mas estar atento ao entrelaçamento do tempo no presente em que me situo ajustando o espelho o mais próximo possível da realidade que me cerca.

A vida é o que acontece enquanto fazemos planos.[3]

Difícil? Quem disse que seria fácil?



[1] Por definição, energia cinética é a forma de energia que um corpo qualquer possui em razão de seu movimento.

[2] Aforismo baseado no eterno devir do velho Heráclito de Éfeso (540 a.C. – 470 a.C.)

[3] Trecho da letra da música “Beautiful Boy” de autoria de John Lennon dedicada ao seu filho Sean.


Comentários

  1. Estarei eternamente olhando pelo retrovisor, sem conseguir deletar o passado, passado esse que cruza constantemente com o presente. Se a vida é um desenhar sem borracha (sem o delete atual) como dizia Millor, a marcha ré da minha existência não funciona para eu poder corrigir as manobras as "barbeiragens" cometidas.

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  2. A vida pelo revisor (auto).
    Somos inexoravelmente condutores do nosso rumo.

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