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ANO NOVO, VIDA VELHA por Ubiratan Rosa [parte 3]

Ora, se até aqui tenho sido infeliz com o conhecido, diz-me a razão que desta infelicidade só me poderei libertar pelo desconhecido. Mas este, o desconhecido, não pode ser um objetivo, uma meta por atingir, uma motivação, porque motivações, objetivos, metas, só se podem estabelecer em relação ao conhecido.

O desconhecido é o novo, que se patenteia quando o conhecido desaparece.

Mas não se deve tomar à letra esse "desaparece", que aqui fica como força de expressão. O "conhecido" são os conceitos que aceitei e elaborei, ou reelaborei, pelos quais norteio minha vida. Integram minha cultura, minha memória, são pensamentos. Não podem, então, "desaparecer", porque o pensamento é indelével (que não se pode delir; que não se dissipa; indestrutível; inapagável).

Não só o "pensamento discursivo" (que inclui o raciocínio, a dedução, a demonstração), mas também o pensamento-emoção (que inclui o que se sente). Tudo o que se pensa, tudo o que se ouve, tudo o que se sente se guarda indelevelmente nos escaninhos cerebrais, e é precisamente por isso que ocorre o chamado "condicionamento psicológico".

Se o cérebro não retivesse as informações que recebe, as palavras conceituais de papai, de mamãe, de vovô, do mestre, do padre, do soldado, cairiam no vazio, "entrariam por um ouvido e sairiam pelo outro", o condicionamento não se efetuaria. Justamente pela sua acentuada capacidade de retenção, o cérebro nele grava o que lhe dão, e até o que apenas lhe sugerem pelas vias subliminares, e em seguida reelabora e mais fortalece as gravações, que são os dados do condicionamento.

Se os dados do condicionamento são assim indeléveis, é claro que não desaparecem quando conhecidos, esmiuçados, sopesados e até ridicularizados no processo de autoconhecimento. Então não desaparecem em sentido próprio, mas em sentido figurado, quando se desativam, quando deixam de influenciar.

Isto é o que realmente ocorre: eles deixam de influenciar, perdem a força condicionante, ainda que fiquem lá nos seus lugares, até muito bem ordenados nos compartimentos cerebrais.

A renovação, ou melhor, a novação ou inovação intransitiva cifra-se nessa libertação das influências condicionantes; e essa liberdade é o desconhecido, que não decorre de nenhuma busca - é, simplesmente, a desativação do conhecido.

A vida que inventamos - Livres dessa influência condicionante, "vivemos com", mas não "vivemos por". Viver com, ou conviver, é estar com tudo e todos, naturalmente - a pátria, a família, as crenças generalizadas, as superstições, os temores, os anseios e frustrações do homem, inteiramente cônscios de sua real natureza, livres dos conceitos que outros lhes atribuíram, ou nós mesmos lhes atribuímos       (na composição de mim mesmo, do meu ego, ou Eu, identifico-me, pelo pensamento, com as inumeráveis conceituações habituais, e consensuais, porque aceitas e valorizadas pela sociedade de que faço parte).

Nessa liberdade conceitual eu vivo, por exemplo, "com a pátria", mas já não vivo "pela pátria". Sociologicamente, não se pode negar a pátria, o país onde se nasce, distinto dos demais países por suas características étnicas e culturais, a índole do seu povo, seu idioma, seus usos e costumes, seus recursos naturais, industriais e comerciais, seu clima, sua flora e fauna, sua história. Viver no país em que se nasce, e viver com ele, é natural e desejável. E mais naturalmente com ele vivemos quando bem o conhecemos. A pátria não faz mal a ninguém; o que faz mal é o conceito de Pátria, com o qual nos identificamos e pelo qual matamos e morremos. Viver na pátria, com a pátria, criativamente, é bom; viver pela Pátria, destrutivamente, é mau.

É destrutivo o conceito de Pátria, porque fragmenta o patriota. Identificado com esse conceito, ele separa-se dos patriotas das nações alheias, e inclusive de seus compatriotas que acaso discordem de seu culto nacionalista. Morbidamente xenófobo (aquele que tem aversão a pessoas e coisas estrangeiras) pela hipertrofia de seu nacionalismo, inclui na sua xenofobia os conterrâneos dele dissidentes.

Comentários

  1. Não posso acrescentar, retirar, omitir ou emitir opinião. Só me resta admirar sua profundeza. E aprender.

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