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ROTINA E NOVIDADE - Citações


Minha intenção é fazer desse espaço internético uma simulação de sala de aula, igualzinho às discussões mantidas em sala física de um centro em que trabalhava como instrutor. Espero que gostem.

Este marcador "Citações" tem como escopo mostrar como deveria funcionar um estudo de Espiritismo. Por ser a "ciência de tudo" - como eu costumo chamá-lo -  é fácil inferir que qualquer obra, de qualquer autor caberá dentro daquele estudo com espírito crítico, porém sem o concreto do fanatismo.

Escolhi um texto de um autor que gosto muito e que muito influenciou meu pensamento e minha visão de mundo – Ubiratan Rosa. É uma forma de homenageá-lo pela lucidez e grande saber.

A beleza do estudo de O Livro dos Espíritos está nas possibilidades infinitas de reflexão dos temas ali abordados. Assim desejava Kardec. Assim tento fazer.


ROTINA E NOVIDADE[1]

Rotina é uma sequência de fatos que se repetem mais ou menos inalteradamente, e esta inalterabilidade nos aborrece. Em geral, não gostamos da rotina. Conta-se que certa feita um estudioso do zen-budismo aproximou-se do seu mestre, e disse: “Mestre, estou exausto. Levanto-me todas as manhãs, lavo-me, tomo o desjejum, trabalho, almoço, trabalho, janto, jejuo às vezes, durmo, para no dia seguinte repetir tudo isso. Como livrar-me da rotina?

E o mestre respondeu: “Ficando exausto, levantando-se pelas manhãs, lavando-se, tomando desjejum, trabalhando, almoçando, jantando, jejuando às vezes, dormindo.”

A princípio pareceu ao discípulo que o mestre ironizava. Mas como este nada acrescentasse à resposta nebulosa, deu por terminada a inquirição e se afastou, cabisbaixo e cismativo. Não precisou, porém, de um cismar tão longo assim para apreender o sentido da resposta: o que muito pergunta é o desamor. Para tudo quer um motivo, uma razão suficiente, e este querer é resistência. Resistência àquilo que “é”. Na rotina o discípulo via um mal; noutros termos, disse-lhe o mestre: “Não resista ao mal”. A não resistência anula o mal, no caso, a aguda noção de rotina.

Nota 1: a rotina é ordenadora, caso não a tivéssemos nossa vida seria um caos completo. O tédio que toma conta da alma por conta dessa inalterabilidade indicada por Ubiratan Rosa é debitada na conta de nossa ignorância.

Nota 2: Ubiratan lembra a passagem em que Jesus solicita aos discípulos que não resistam ao mal (Mateus, 5-39).



[1] Ubiratan Rosa, Revista Psicologia do Comportamento nº 13, página  20.

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