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CULPA - Parte II


18/08/2017

A (quase) exigência de ser bom, perdoador, resignado, compreensivo, otimista e alegre o tempo todo só seria cabível se não fôssemos humanos; e, pior, é fonte de normopatia.

Discursos desse tipo abrem um abismo entre a realidade interior e o humano idealizado. Com isso o sujeito estrebucha no limbo e é atirado em uma zona acinzentada na qual procura sair, desesperadamente, na primeira porta que se abre – essa porta pode ser representada por uma das diversas correntes religiosas, ideologias de variados matizes as quais, não raro, prometem alívio e salvação do sofrimento intenso e constante.

Pode ser que os apelos dessas correntes tragam conforto para o desgraçado – o que não é de todo ruim, mas não resolvem aquilo que foi recalcado, “despejado” no inconsciente, cuja manifestação pode ocorrer a qualquer tempo e em qualquer lugar de forma potencializada as quais acabam em explosões de ira incontrolável, de insatisfação profunda, de miséria espiritual subjacente, de flagelação e suicídio.

Esse mal-estar no qual o sujeito se vê, por força das exigências daquele discurso, é bem diferente daquele em que o sujeito se depara pela observação intensa, interessada, inteligente de suas próprias sombras – daquilo que se “mexe” dentro dele. Nessa situação há um como que gerenciamento de suas dificuldades, limitações e frustrações, apesar do mal-estar (não gosto do termo “gerenciamento” por dar a impressão de que a vida pode ser colocada numa planilha de Excel, mas é o que me ocorre neste momento).  Esse “controle” é mais salutar e com grande possibilidade de êxito, mesmo sendo precário e provisório, porque além de não se submeter à vontade alheia – ao discurso alheio, ele não busca a primeira porta que aparece; convive com as sombras para dissipá-las com naturalidade e grande empenho resultando assim no fortalecimento do caráter, em crescimento espiritual efetivo e, de quebra, ajuda na eliminação de lixo mental.

Essa luta interna está simbolizada no registro evangélico quando Jesus diz que “não veio trazer a paz, mas a espada”. Enquanto humanos, não teremos sossego.

Nota importante: não estou dizendo que o "discurso alheio" deve ser descartado; lembremos de Bernardo de Chartres: “somos como anões sobre os ombros de gigantes.” Não podemos prescindir do pensamento filosófico dos grandes sábios que nos precederam. Estou dizendo que temos de tomar nossas vidas nas mãos e não entrega-las a quem quer que seja. Uma vida temperada e rica exige nosso protagonismo com todas as suas dores e dissabores. Reverbera na mente o que disse o Cristo: “tome tua cruz e siga-me”, ou seja, não existe almoço grátis.

Difícil? Quem disse que seria fácil?

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